Letícia Genesini
“A bússola, a balança, o bastão
Adam Mickiewicz
de medida aplicam-se apenas
a corpos sem vida”[1]
“A rose is a rose is a rose”
Gertrude Stein
Nas últimas décadas, as histórias da sexualidade saíram da esfera privada e foram, para além da praça pública, ganhar o mundo.. “Como iniciar um romance?” pergunta Gilles Lipovetski em seu livro “A Sociedade da Sedução”, completando em seguida: “No passado, as técnicas de aproximação obedeciam a rígidas regras de costume; (…) Como não é mais tolhida por regras coletivas, (hoje) a atração entre os seres pode, pela primeira vez, funcionar como um poder soberano”. Em outras palavras: não há motivo que mais legitime o estar junto do que o querer. As instituições que antes ditavam como a união dos casais deviam seguir, agora correm atrás de darem conta das faces múltiplas do desejo humano.
Isso, que é um claro avanço para os direitos individuais, pede também de nós uma reflexão, antes que pelas avessas reergamos o raciocínio de que o desejo humano é passível ser legislado. Um fator em pauta me chama a atenção: é preciso diferenciar as articulações dos movimentos políticos que defendem o direito social das diversas formas e expressões da sexualidade, com a sexualidade em si.
Um movimento segue a lógica do campo comum, de agrupar os indivíduos sob uma bandeira para lutar por uma causa — no caso, causa gay, causa lésbica, causa trans etc. São abstrações necessárias para que haja o debate da igualdade perante a lei. Afinal, onde opera a lei se não no campo de jogo do simbólico? O que nos pede, não só uma identificação do que somos pelo nome, mas exige registro em cartório, documentado, carimbado, protocolado. Já a sexualidade humana, contrariamente, é o que resiste a toda ordenação. Ou como melhor disse o poeta, é “O que não tem medida, nem nunca terá / O que não tem remédio, nem nunca terá / O que não tem receita”[2]. Se no RG temos um nome, um gênero, uma filiação, nada disso sana a dúvida de quem somos nós, muito menos do que quer o nosso desejo.
O resultado é uma dissonância incontornável: uma pedra no meio do caminho[3].
Para fazer hastear as bandeiras cria-se uma classificação, uma sigla. Não dando por satisfeito (afinal, o simbólico não dá conta da nossa satisfação), enumera-se mais uma letra. E uma ainda mais. E ainda mais. E ainda mais. Aproxima-se da casa infinitesimal — L G B T… Q… I… A… E no lugar do ponto final, colocamos um “+ “, como quem percebe os limites da palavra: nenhum nome é capaz de recobrir o real da sexualidade.
Diferente de todos os animais, que nascem sem a sombra da dúvida de como agir, como existir e como amar, não encontramos na natureza a resposta pronta para quem somos. Nossa identidade e sexualidade, já mostrava Freud, não responde à nossa biologia. Mais do que isso, nosso próprio corpo, aquilo que deveria nos ser mais íntimo, é um buraco desconhecido, não nos vem completo. No espelho, como mostra Lacan, tentamos unificar o que nos é dado em pedaços, mas algo de nós sempre fica de fora de toda e qualquer representação. A gente não cabe no olhar do outro — algo sempre falta — , e por isso mesmo há o desejo.
Para essa falta não há encaixe perfeito. Não há na natureza um objeto pronto para nosso desejo que segue, como disse Jorge Forbes, irrespondível[4]. Temos um nome, sim, mas se nem isso traz a chave de quem somos, quem dirá uma sigla alheia? Independente de qualquer abstração que se possa fazer, por trás de toda a bandeira que possa nos unificar e defender nossos direitos civis, a sexualidade não existe no coletivo, e sim na radical diferença: no um a um a um.
Essa ótica existencialista, que há poucas décadas foi protagonista no debate da legitimação das diferentes expressões da sexualidade, parece ter deixado os movimentos de hoje. Seria, quiçá, um trunfo para eles mesmos lembrar justamente que o sujeito está para além da identificação e da representação; recobrar um reconhecimento ao impasse radical da sexualidade humana, pois é este por fazer que conclama cada sujeito desejante a falar de si.
Que as legendas e bandeiras avancem nos debates da igualdade de direitos civis, sem que esqueçamos, porém, que sexualidade alguma será resumida a siglas, que nenhuma classificação dará conta do humano. O buraco irredutível do desejo é um incômodo que cabe a cada um de nós inventar uma resposta (ainda que para sempre insatisfeita): um nome próprio[5] e inalienável.
[1] “ ‘A bússola, a balança, o bastão de medida aplicam-se apenas a corpos sem vida’. Algo em relação à vida humana, insinua Mickiewicz, escapa da mensuração” Robert P. Crease em A Medida do Mundo (Zahar, 2013).
[2] “O que será que será” (Milton Nascimento/Chico Buarque)
[3] “No Meio do Caminho”, Carlos Drummond de Andrade
[4] Referência à palestra de Jorge Forbes que inaugurou o ano letivo de 2020 no IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana
[5] Referência ao texto Os Caminhos da Psicanálise: O Nome Próprio, de Jorge Forbes http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/caminhos-psicanalise-nome-proprio.html