O monstro-bebê 06/02/2014

Por Dorothee Rüdiger

O menino encontra satisfação agindo; mas quer simbolizar, quer falar

Quem vê Rodolfo, um menino de cinco anos, bonito, inteligente e comportado, mal acredita que era o “monstro-bebê”, o terror da escolinha encaminhado para a psicanálise. Vale aqui narrar, como do pequeno monstro, no divã, nasceu um menino.

Maria Tomie, a mãe de Rodolfo, tinha 15 anos quando foi, grávida, morar com Vicente, à época, com 22 anos. Os três formaram uma família talvez jovem demais para não acabar em briga e separação. Maria levou o menino para morar com seus pais. Vicente ia ver o filho e participar de sua educação. Mas, os planos mudaram quando conheceu outra mulher e foi morar no interior.

Quando Maria e Rodolfo chegaram para a primeira entrevista psicanalítica, o segundo filho de Vicente estava para nascer. Morando longe de São Paulo, o pai mal conseguia falar com o filho ao telefone. Sobrou para Maria a parte pesada da maternidade: trabalhar, estudar e educar.

Rodolfo frequentava o jardim da infância, lugar onde as crianças brincam e têm atividades que exigem disciplina. Devem sentar para desenhar, ler e debater livros de estórias infantis. É nessa hora que Rodolfo inventava de “brincar de monstro”. Derrubava cadeiras e rabiscava os desenhos dos colegas. Ninguém era capaz de detê-lo. Era missão para um psicanalista, talvez? Essa foi a aposta!

Ainda na presença do pai e da mãe, Rodolfo, na primeira entrevista, revelou sua angústia diante da separação dos pais. Escreveu uma carta para os dois, com um desenho de corações em volta do casal. “Quero vocês juntos. Amo vocês.” Comentou, diante dos pais constrangidos.

Depois disso, Rodolfo, aparentemente, melhorou sua disciplina na escola. Mas, quando nasceu a irmã por parte do pai, “surtou”: não obedecia, rasgou o livro de um colega, derrubou a mobília, agrediu a professora. Em sessão, abriu uma caixa de brinquedos. Dentre outros objetos, escolheu dois dinossauros: um tiranossauro rex e um pequeno dinossauro. Várias vezes, colocou-os em pé e os derrubou, dizendo: “Odeio ele”. “Não, amo ele, meu pai”.

Sobre o que aconteceu na escola, comentou: “Quis brincar de monstro, mas ninguém gostou.” Na próxima sessão, então, escolhi dentre os brinquedos duas famílias: dinossauros e humanos. Rodolfo chegou e atirou os brinquedos, até que sobraram um boneco homem e um bebê no meio da sala. Rodolfo comentou: “odeio ele, porque ele me chutou”.

O paciente largou os brinquedos. Quis experimentar o divã. Rodolfo sentou, pediu o telefone emprestado e perguntou: “Qual é o número do papai?” Inventei: “59 73 80 35”. Rodolfo discou e falou com o pai e a irmã ao telefone. Acalmou-se. Na próxima sessão, apareceu o monstro no divã. Rodolfo deitou, chorou como bebê, para, depois, roncar “feito um monstro”. Acordou e derrubou tudo o que viu pela frente. Dei um “berro de monstra”. Imediatamente, acabou a cena “monstruosa”. Rodolfo diz, calmamente: “é melhor ir para casa.”

O monstro reapareceu na sessão seguinte. Rodolfo brincava de “assar pão de queijo” com balinhas. “Para quem são os pães?”, perguntei. “Para a tia e meu pai.” Quando acabou de dizer “meu pai”, apareceu o monstro. Gritou, esperneou, jogou objetos, deu chutes. Meu berro não funcionou. “Você é a monstra Doroti”, falou. “Muito prazer”, quem é você?” – perguntei. O monstro não se identificou. “Deixe-me adivinhar, você é o Rodolfo?” – indaguei. Imediatamente, Rodolfo se acalmou e protestou: “Não sou um monstro, sou um bebê.” Enrolou-se numa manta e se escondeu. “Pode nascer, bebê, o pão de queijo está pronto”, convidei-o. Rodolfo nasce, escolhe duas balas, calça os sapatos e vai embora, jogando, mal e mal, um beijo de despedida.

Sigmund Freud chocou a sociedade vienense com suas teses sobre a infância. Em Três ensaios para uma teoria da sexualidade, de 1905, disse que é porque “todas as inclinações perversas têm sua raiz na infância, que as crianças têm todas as condições de desenvolvê-las e de realizá-las na medida da sua condição imatura”. Em relação à sexualidade infantil, Freud disse: “A criança é considerada pura, inocente, e quem a descreve como diferente pode ser acusado como um malfeitor desalmado que desrespeita os sentimentos delicados e sagrados da humanidade.” O psicanalista conhecia o lado “monstro” da criança, a começar pelo amor-ódio dos pais.

O monstro-bebê aparece como sintoma. Jacques Lacan, em Duas notas sobre a criança, descreve, em 1969, a função da família na transmissão da cultura como sendo responsável não somente pela sobrevivência biológica, mas, também, cultural de seus membros. A família transmite que o desejo só se realiza dentro da Lei. Na família tradicional, é o pai quem transmite a Lei, pois “seu nome é vetor de uma encarnação da Lei no desejo”. No século XXI, o pai deixou de ser o norte. No caso de Rodolfo, o pai está longe do filho e a mãe está trabalhando. O filho age ao invés de falar. Rodolfo mostra o que Jorge Forbes chama de desorientação pulsional, expressa pelo que chama de curto-circuito da fala. O menino encontra satisfação agindo. Mas quer simbolizar, quer falar. E não é o nome do pai que o chama à “existência humana”, é seu próprio nome. Chamado pelo nome, nasce um ser humano que come pão de queijo quentinho.  

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em direito pela Universidade de São Paulo.