O medo do mestre 23/07/2014

Por Evandro Limongi Marques de Abreu

Quem é o Estado? Povo, território e governo dão conta ainda de explicar tal organização ficcional de instituições públicas?

“Que medo você tem de nós, olha aí”. O mote da música Pesadelo, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, interpretada em 1972 pelo grupo MPB4, permanece de uma espantosa atualidade diante dos recentes episódios de detenção de advogados em pleno exercício de sua profissão, em São Paulo.

Quem é o Estado? Povo, território e governo dão conta ainda de explicar tal organização ficcional de instituições públicas? No mundo globalizado, relevante é seu esvaziamento como princípio vertical ordenador da vida – um deles, como Pai e Patrão -, tal qual há tempos aponta Jorge Forbes.

O desbussolamento é o efeito atual desse “defeito” presente. No seio do Estado, em avançado estado de dessacralização, povo e governo não se acertam. Surgem reivindicações, protestos, e os acting-outs que ensejam apoio de uns e repúdio de outros, mas que cindem, num estalo, o que até então estava estabelecido. O Real dá as caras sem pedir licença.

O que, hoje, mundo afora e aqui, faz-se notar não é mais uma das crises comuns, ou uma reação de alguns dos órfãos do que Jacques Lacan chama de “Nome-do-Pai”, do grande norteador. Sem, nesse momento, querer abordar aspectos da agressividade de algumas das manifestações da crise, chama a atenção a reação despropositada de quem, em posição de poder estatal, não o entende como serviço a ser exercido com limites, mas sim como arbitrariedade – a de (im)pôr sua ordem sobre a dos demais.

Nesse contexto, dois episódios recentes envolvendo advogados preocupam. Um dos advogados foi detido ao querer ingressar num prédio onde se cumpria mandado de reintegração em posse. O advogado estava exercendo seu ofício que é de prestar orientação jurídica no local. Outros dois advogados foram detidos e agredidos por exigirem que uma policial militar desse seu nome e grau de patente. A policial estava atuando sem essa identificação. Mesmo assim, sentiu-se “desacatada”.

Estaríamos vivendo (como outrora) numa situação de repressão abusiva e truculenta, na qual advogados, os chamados a falar em nome de outrem, estão “ofendendo” os “donos da Lei” ao exigirem seu cumprimento? Representariam os episódios de terror policialesco sobre os advogados um gozo “desencapado” de cidadãos fardados? Ou seriam mostra de haver “mestres” assustados com uma liberdade à qual não estavam acostumados e que os questiona a exigir responsabilidade?

A convivência cidadã no espaço público, o exercício das liberdades de todos, reclama responsabilidade também dos representantes do poder público. Urge a reinvenção de seus papéis numa democracia. Não foi outorgada ou tolerada por ninguém, mas conquistada e encarnada pelo povo, no corpo pulsional e desejante. O nome do disco citado no início, nesse sentido, é sugestivo: chama-se Cicatrizes.

Evandro Limongi Marques de Abreu é psicanalista, advogado e professor universitário