O marco da civilidade 13/03/2014

Por Dorothee Rüdiger

Dispensar a criação da lei do marco civil ou de outra lei que possa garantir nossos direitos na internet seria ingênuo demais

Quem diria que a internet, nosso mundo novo criado pela tecnologia da informação, daria tanta dor de cabeça a ponto de necessitar de uma norma que pretende reservar um marco de civilidade. Por hora, trata-se de um projeto lei que está tramitando, desde 2011, no Congresso Nacional. Idealizada pelo Ministério da Justiça e da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, que abriga um dos mais importantes centro de estudos do direito no Brasil, a futura lei, se for aprovada, virá a regulamentar não somente os direitos e as garantias dos usuários da internet, como também sua acessibilidade e as possibilidades de atuação do poder público. Parte da internet deve, assim, transformar-se em espaço público, fugindo do domínio de empresas privadas e de interesses políticos e militares alheios ao Brasil.

A internet deixaria de ser uma terra onde mandam poucos e muitos abusam, no mínimo, da paciência dos usuários. Onde tudo se curte, o que fazer quando não se curte algo que caiu na rede? A lei pretende dizer dos limites daquilo que, num espaço reservado à sociedade civil e a cada um dos usuários, será possível realizar ou não. A questão é se precisamos, de fato, de uma lei para a internet.

Nessa questão, os ânimos divergem. Há quem faça campanha a favor da lei, colete assinaturas, mobilize a sociedade civil para que a constituição internáutica saia das gavetas do Legislativo. Muitas organizações não governamentais militam pelo marco civil não somente no Brasil, mas em escala global. Outros seguem, ao contrário, o lema “se hay gobierno, soy contra”. Outros, ainda, descobriram que a aprovação da lei pode ser moeda de troca no cenário político partidário.

Que posição tomar nessa confusão? A internet, com sua profusão de dados e sítios, guarda algo que Jacques Lacan chamou de Real. O Real foge da normatização. Pode incomodar e angustiar. Mas, já que o que foge à normatização pode ser uma fonte de criatividade, a questão é se nossa nova civilização, baseada na informática, só vai funcionar na base daquilo que Sigmund Freud chamaria de “pacto entre os irmãos”, a lei. Ocorre que, na civilização pós-moderna, somos muito céticos em relação à lei. Questionamos as autoridades e a fiscalização. A ética, a tomada de atitude de cada um, é muitas vezes mais eficiente que o enquadramento no rigor da lei. Desativar um serviço de uma rede social, trocar por outra são atitudes singulares que podem ser tomadas por cada um. Mas, nem por isso, podemos abrir mão das leis e da imposição de seus limites. São fundamentais até para nossa civilização contemporânea. Dispensar a criação da lei do marco civil ou de outra lei que possa garantir nossos direitos na internet seria ingênuo demais. No entanto, para que essa lei realmente “funcione”, cada cidadão é chamado a ter atitude. Depende de cada um fazer do marco civil um marco de civilidade.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo.