Letícia Genesini
“As coisas em si são irredutíveis;
Julio Cortázar
haverá sempre um sujeito
em face do resto do Cosmos”
I
A todos nós é cobrado um preço para entrar na civilização, uma renúncia[1], diz Freud em “O Mal-Estar na Cultura”. Ainda com todos os benefícios da vida humana em sociedade, essa soma nunca é completamente restituída, algo nos falta — eis o Mal-Estar.
Haveria como acertar essa conta? É o que perguntaram aqueles que viram no Mal-Estar apenas um retrato da sociedade do Século XIX, uma sociedade que, por sua rigidez, censuraria do ser humano sua naturalidade. Passaram então a propor outros modelos sociais, mais permissivos, mais hedonistas, mais harmônicos… mais naturais. Modelos que buscaram restituir ao homem seu lugar no mundo.
Para Freud, porém, não há esperança de uma univocidade[2]. Não importam os modelos civilizatórios, ou os laços sociais, o que nos é tirado ao entrar na civilização nunca poderá ser restituído, porque não há uma civilização mais natural que a outra. Dos povos pré-colombianos à colonização de Elon Musk em Marte, todas pressupõem igualmente o artifício. O léxico Freudiano é radical: há a Cultura porque não há, para nós, a Natureza das coisas.
É do estilo Freudiano a insatisfação frente às conclusões. Freud, durante toda sua obra, não se dá facilmente por convencido nem por seus próprios argumentos. Um texto raramente encerra seu pensamento, deixando sempre questões entreabertas. Com uma insatisfação de cientista, ele sabe que o motor da sua pesquisa é a incerteza. Em “O Mal-estar na Cultura”, porém, não se trata mais da dúvida frente ao modelo de pensamento, da esperança científica de uma explicação melhor. Aqui, Freud aponta para perda da esperança de uma teoria totalizante: “Para fora desse mundo não podemos cair”[3].
O final entreaberto do texto pede um retorno ao seu início, em que Freud responde que não há um sentimento oceânico. Nesse movimento circular vemos: a obra insiste na falta de solução, o Mal-Estar na Cultura é irredutível.
II
Chegamos à carne, à menor das partes, ao resto da equação.
Se muitos pós-Freudianos não sustentaram as frestas de sua obra, Lacan faz o movimento oposto, e inclui a falta em seu sistema de pensamento: vemos aí o real lacaniano. Mais do que uma pura formalização, é o que nos permite levar os conceitos freudianos aos sintomas de hoje.
Saímos da sociedade do século XIX. Como aponta Jorge Forbes, o laço social vertical e rígido se flexibilizou e se horizontalizou. O mundo mudou, todavia, não solucionamos o Mal-Estar. Pelo contrário, retiradas as verticalidades, a fenda da experiência humana se torna ainda mais evidente. “Vivemos uma epidemia de Real”, diz Jorge Forbes.
Mais uma vez buscam solucionar o Mal-Estar, seja através de um retorno aos padrões anteriores, ou de uma guerra declarada a todo artifício da Cultura. Em suas falas, se dizem opostos, mas em sua esperança de completude ambos não são mais do que tentativas de tamponar o real.
III
Para o senso comum a perda da esperança de completude soa como um cinismo, trata-se, porém, de seu oposto: de uma aposta radical na vida humana.
Devemos lembrar, Freud escreve “O Mal-estar na Cultura” em 1929, sob o prenúncio do nazismo e da Segunda Guerra. Não, a esperança freudiana não é que tenhamos um laço social sem impactos, mas que o desejo humano fosse, então, capaz de soluções melhores do que as que estavam por vir.
A pergunta, ainda hoje, não é como solucionar o Mal-Estar, pois não se cura ninguém do acaso de ser humano, mas o que fazer com ele. É a aposta da psicanálise.
[1] “O Mal-Estar na Civilização”, Companhia das Letras, V. 18, p.60
[2] Referência à fala de Jorge Forbes na conferência de abertura do ano letivo do IPLA 2021
[3] “O Mal-Estar na Civilização”, Companhia das Letras, V. 18, p.15