François Ansermet
Pensar os laços entre neurociências e psicanálise obriga a pensar no incomensurável: pensar a partir do “nada em comum”, para além de toda tradução, superposição, analogia redutora, ou relação de causa-efeito simplista. Caso contrário, permaneceremos nos pulos da pulga – no paradigma da pulga. Pegamos uma pulga, batemos uma palma: ela pula. Se lhe cortarmos uma pata, depois duas, depois três, ela vai pular cada vez menos longe. Se lhe cortarmos todas as patas, ela não pula mais de jeito nenhum, quando batemos palma. Conclusão: a audição está nas patas!
Corre-se sempre o mesmo risco na interpretação das funções do cérebro: ser apanhado em uma relação estrutura-função simplista, linear, contínua, sem resto, que leva a um falso raciocínio apesar de seus ares de evidência. A causalidade orgânica cai na armadilha de uma suposta causalidade natural exclusiva, que rejeita o que Lacan chama de “causalidade lógica”[1], uma causalidade que implica o logos – a linguagem que está no cérebro como uma aranha: “Não é pois entre o físico e o psíquico que o corte deveria ser feito, mas entre o psíquico e o lógico… O aparelho linguageiro está em alguma parte do cérebro, como uma aranha”[2]. O que faria passar das neurociências às logosciências[3]. Como precisa Lacan, “A linguagem nos vem de fora, já estava ali antes de nosso nascimento e ali continuará depois de nossa morte. Só isso.” E a linguagem é justamente aquilo que faz com que “se sonhe, se ria, se erre, e é por isso que existe o inconsciente e o sujeito, para gozar e desejar”.
A causalidade do logos constituiria, pois, aquilo que é próprio do bio-“lógico”. Mas não exclusivamente, há também o outro termo, o “bios”, o vivo. Não se pode separar nem o logos nem o bios do biológico – e é isso que indica paradoxalmente o inconsciente, em suas duas vertentes: o inconsciente lógico e o inconsciente gozo, como os distinguiu Jacques-Alain Miller[4]. Daí deriva também o título de nossa exposição: o inconsciente e o vivo, tudo em comum.
Mas o inconsciente é antes de tudo um produto da cura. Um inconsciente que nos mostra antes de tudo uma hiância – que se agarra a um “real que pode, ao contrário, não ser determinado”[5], que nos leva para além do logos e para além do vivo.
A análise não se defronta, efetivamente, apenas com o não-sabido: ela se defronta também com o real. É assim que Lacan coloca em jogo mais o real do que o inconsciente. A análise volta a encontrar o impasse lógico do impossível[6]. E como precisa Lacan, é ali que surge o real.
A ciência em seu projeto gostaria de poder tratar o real com as suas fórmulas. Mas, quanto mais ela o trata, mais ela o produz. Nisso a ciência, como toda prática simbólica, possui o mesmo defeito estrutural do simbólico que pretende abarcar todo o real. É talvez aí, paradoxalmente, que o real da ciência encontra o real da psicanálise, com a única diferença que a psicanálise não recua diante do real, contrariamente à ciência que não para de querer assimilá-lo.
É assim que as ciências, em particular as neurociências, devem rejeitar o real para avançar, para se darem a ilusão de avançar. Se Freud via na ciência o futuro de uma ilusão, espanta-nos, hoje, a ciência como ilusão, como religião, pelo menos em algumas de suas versões, como as neurociências cognitivas – que às vezes beiram o sofismo, à força de acreditar em seus paradigmas. Como o das bases biológicas dos distúrbios psíquicos. Primeira proposição: admite-se que existam distúrbios psíquicos. Segunda proposição: formula-se a hipótese que esses distúrbios psíquicos teriam uma base biológica. Terceira proposição: demonstra-se – ou pensa-se demonstrar – essa base biológica. Quarta proposição: se possuem base biológica, esses fenômenos não são, pois, psíquicos. Donde se conclui que não existem, pois, distúrbios psíquicos.
A ideia de bases biológicas está na raiz do risco reducionista que constitui o impasse das neurociências contemporâneas. Para sair desse impasse, seria preciso distinguir as propriedades biológicas dos estados psíquicos. As propriedades biológicas que permitem a memória nada têm a ver com a memória. O mesmo acontece com o inconsciente. Se não se consegue estabelecer essa distinção entre propriedades e estados, permanece-se necessariamente no impasse. A neurobiologia carece de uma revolução epistemológica.
Mas esse reducionismo das bases biológicas vai a contrapelo de certos avanços das ciências, como sugere a evidência da instabilidade genética e da plasticidade. O sujeito mais inscreve traços do que é resultado deles. Procede mais da descontinuidade do que da continuidade. Assim, nunca utilizamos duas vezes o mesmo cérebro. Envolvidos em uma mudança permanente, seríamos antes de tudo biologicamente determinados para não sermos completamente biologicamente determinados. Determinados a não sermos determinados. Por que não foram tiradas as consequências desses avanços? De onde vem essa resistência diante daquilo que não se quer reconhecer – e que, contudo, talvez já se soubesse? Dante já o dizia a respeito da relação entre língua e natureza: “obra da natureza é que o homem fale, mas desse ou daquele modo, a natureza deixa que você mesmo faça, em seguida, como lhe aprouver”[7]. O vivo faz com que o homem seja inacabado, temporal e instável, o que lhe oferece a possibilidade de se reinventar incessantemente, para além de qualquer suposta base biológica: de se inventar a partir do vivo, de se inventar diferente, imprevisível.
De onde vem essa inclinação das neurociências ao reducionismo? Talvez do fato de que é preciso excluir muitas coisas para que o seu modelo funcione: ser redutor ao ponto de abordar o cérebro rejeitando o vivo. E também a morte.
O cérebro das neurociências é um cérebro ideal, homeostático, regulado. Como tal cérebro equilibrado pode produzir um ser humano tão desregrado? É uma contradição maior das neurociências o fato de não abordar o homem desregrado, em prol de um homem neuronal, ideal, que em nada se parece com o homem tal como ele é. O homem desregrado é rejeitado. Só é buscado no registro das patologias, ao ponto de elas serem cada vez mais extensas, frequentes – até uma patologização da condição humana, atrás da qual se corre coletando múltiplos dados, até mesmo pelos smartfones –, patologias emaranhadas em toda espécie de estratégias digitais que fragmentam o sujeito, tornado objeto, no infinito do Big Data.
A rejeição do vivo, assim como a rejeição do sujeito, está na base desse impasse nas neurociências. E, finalmente, uma rejeição do inconsciente, do inconsciente considerado pelo lado do vivo, do inconsciente de puro gozo e não somente de pura lógica. Não é apenas a linguagem que parasita o cérebro. O gozo também! Estamos assim face a um duplo parasitismo: da linguagem sobre o vivo, do vivo sobre a linguagem[8] – do gozo produzido pela via do significante.
Trata-se, em todo caso, de tornar claro o laço entre o inconsciente e o vivo. O que passa, como propôs Jacques-Alain Miller, pelo fato de colocar a equivalência entre a pulsão e o inconsciente – uma equivalência que faz com que o falasser lacaniano venha substituir o inconsciente freudiano. Dessa forma, o binarismo entre inconsciente e pulsão – entre inconsciente e vivo – desaparece.
Inversamente, pode-se constatar que estamos face a uma rejeição do vivo no campo das neurociências, mesmo se estas se apresentam como as ciências do vivo! Uma rejeição do vivo que alcança a perfeição no campo da inteligência artificial, até as fabricações contemporâneas de robôs aos quais se dá forma androide.
O corpo das neurociências é um corpo sem o vivo, sem o vivo que o perturba. Mas não apenas uma rejeição do vivo: uma rejeição da morte também. O vivo e a morte são, juntos, não levados em consideração por trás de uma visão idealizada, eternizada do cérebro.
A rejeição do vivo procede de uma perspectiva melancólica, mais especificamente daquela própria à síndrome de Cotard – que descreve aqueles que se imaginam sem corpo, sem órgãos, e mesmo sem cérebro! Uma visão sem vivo que introduz a uma “imortalidade melancólica”[9], que constituiria a peculiaridade das neurociências contemporâneas, pelo menos em sua versão idealizada que consiste em se tornar o modelo de todas as coisas excluindo o vivo.
Seguir esse caminho significa submeter-se ao risco de Titono na Odisseia. Quando Aurora deseja para o seu amante Titono a vida eterna – como as verdades eternas, a-históricas das neurociências cognitivas – ela esquece de pedir para ele a juventude eterna: ele se torna cada vez mais velho, encarquilhado, como um inseto… cada vez mais horrível de se ver, insuportável: é isso que ameaça as neurociências, se elas continuarem a excluir o vivo!
A psicanálise, contrariamente às neurociências, não exclui o vivo. É assim que, de modo inesperado, a psicanálise, mais do que ser enterrada pelas neurociências, pode ser vista como o futuro delas!
Tradução de Marcia Valéria
Aguiar
[1] Lacan J., « La psychanalyse vraie, et la fausse » (1958). In : Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 166.
[2] Lacan J, « Mon enseignement », Seuil, Paris, 2005
[3] Ansermet F. « Des neurosciences aux logosciences ». In : Miller JA. Qui sont vos psychanalystes ? Seuil, Paris, 2002, 376-383.
[4] Miller JA, « L’inconscient et le corps parlant », La Cause Du Désir 2014/3 (N° 88), 103-114 (no congresso AMP do Rio sobre o inconsciente e o corpo falante)
[5] Lacan J., Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil 1973, p. 25.
[6] Lacan J., Le Séminaire, livre xvii, L’envers de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1991, p. 143
[7] Dante, A divina comédia, canto XXVI, 130-132.
[8] Citação sobre o parasita no Sem. XXIII.
[9] Starobinski J , « Le regard des statues » na parte « Rêve et immortalité mélancolique, In : L’encre de la mélancolie, Seuil , Paris, 2012, 471-498