Helainy Andrade
Artigo que estabelece em texto a conferência “O Futuro da Medicina é a Psicanálise?”de Jorge Forbes, apresentada no Sábados no IPLA: Psicanálise e Medicina, em 22 de outubro de 2022. O autor da conferência não reviu este estabelecimento.
Para onde vai a medicina hoje em dia? Para onde vai o tratamento da pessoa humana hoje em dia? Como faz a medicina? Como faz a psicanálise?
O Sábados no IPLA, de 22 de outubro de 2022, fez conversar psicanálise e medicina.
A conferência de abertura foi realizada por Jorge Forbes e convida a pensar no futuro da medicina: “O futuro da medicina é a psicanálise?”. Ela está dividida em 2 partes. Na primeira, os bisturis para o debate atual sobre o que a medicina está fazendo e que a psicanálise está fazendo para o tratamento do humano. E, na segunda, o texto de Jacques Lacan, em 1966, resultante de sua participação num colóquio com médicos, no Hospital da Salpêtrière, em Paris.
Refraseamento
Por uma questão de método, Jorge Forbes opta por trabalhar primeiro os bisturis das discussões atuais e depois retomar o texto de base, o texto de Lacan. A razão de ser dessa escolha é o trabalho de refraseamento, no qual ele tem insistido, em sua orientação científica no IPLA, a respeito de que “a descoberta é muito mais atual do que o discurso da descoberta”. (JF)
Isso não é imediatamente claro, tomemos então um exemplo, que ele mesmo traz para monstrar: os monólogos articulados.
Em seus trabalhos nos últimos anos sobre a música eletrônica, num primeiro momento, Jorge Forbes nomeou música eletrônica de “bate-estaca”, por estar acostumado aos estilos musicais anteriores, a bossa-nova, por exemplo, que se ouve junto e dança junto. Dançar junto é dividir sentido e significação. Na música eletrônica, diferentemente, se está junto, mas não se dança junto.
Refraseada a música eletrônica, evidencia-se que nela se tem um sentido e múltiplas significações. E mais, que quando isso ocorre, temos aí um viral. Refraseado, o “bate-estaca” vira monólogo articulado. Lembremos que na psiquiatria, monólogo é coisa de louco. Já monólogo articulado é outra coisa, que não é nem “bate-estaca”, nem coisa de louco, é um nome novo para uma coisa nova. Enquanto estamos presos ao discurso antigo, estamos presos ao reconhecimento e, no reconhecimento não descobrimos nada, viramos genéricos (JF).
Assim, voltando à descoberta e ao discurso da descoberta, Jorge Forbes realça que nós melhor aproveitamos a descoberta, depois de tê-la refraseado.
Isso esclarece por que dizemos que Lacan faz a releitura freudiana. Lacan, à sua época, se vale da linguística para refrasear a psicanálise. Opondo-se, veementemente, aos alunos de Freud, ele defende que eles não acompanharam seu mestre e que Freud não falou que o inconsciente é uma caixinha de fantasias, mas sim que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, quando descobriu nosso mecanismo de funcionamento mental na Interpretação dos Sonhos, ao se referir à condensação e ao deslocamento, que a linguística, mais tarde, chamaria com Ferdinand de Saussure de metáfora e metonímia, respectivamente.
O ponto em que Jorge Forbes insiste é que quando você nomeia o novo com o antigo, você faz com que aquilo seja um já visto e isso aplastra a virulência daquela descoberta. Temos de ir no sentido contrário, o de reavivar as grandes descobertas.
Bisturis para as discussões atuais
Nessa sessão que Jorge Forbes chamou de primeira parte da aula, ele apresenta alguns bisturis para melhor instrumentalizar para as reflexões atuais acerca dos tratamentos pela medicina e pela psicanálise.
- A psicanálise nasce como fracasso da medicina. Freud fracassa na sua linha inicial de pesquisa médica. Antes dos 30 anos de idade, ele sai de Viena e vai passar 4 meses nesse mesmo hospital da Salpêtrière, em Paris, para fazer seu estágio com Charcot. Ali, percebe que todo o conhecimento em neurologia que ele tinha, e que não era pouco, não explicava como que uma pessoa podia entrar paralisada numa sala, ser hipnotizada e “desparalisar”. Depois, sair da hipnose e voltar a ficar paralisada. Isso, a anatomia que ele conhecia não dava conta de explicar. Do ponto de vista neurológico, era uma aberração. Ele precisaria de uma outra coisa frente a essa dificuldade, frente a esse fracasso.
- O “Freud explica” é um termo para dizer “explica o inexplicável”, o inexplicável do ponto de vista científico. Sobre o fracasso que ele presenciou na Salpêtrière (fracasso de uma explicação neurológica), ao invés de achar que amanhã se saberia mais, Freud soube dizer “isto não se resolve na explicação científica”. O Freud explica é uma explicação outra, distinta da explicação neurológica.
- O avanço da psiquiatria vai levar ao desaparecimento da psicanálise? Essa pergunta foi matéria recente de uma revista de prestígio. A posição do psiquiatra é o avesso da posição do psicanalista. O termo avesso não é ingênuo, é utilizado por Lacan no seu Seminário de 17, O avesso da psicanálise. O avesso da psicanálise, que é a medicina, diz se você está bem, ou se você está mal e, se você insiste em dizer que está mal quando foi dito que está bem, você sai com um diagnóstico de hipocondria e um encaminhamento para falar com o psicanalista que é quem cuida destas coisas. O médico diz o que você tem, o que você tem que fazer e se você ficou bom. Ele decide esses critérios baseados na OMS, a Organização Mundial de Saúde.
- O problema do cientificismo da medicina baseada em evidências. Para se contrapor ao charlatanismo, a medicina foi se basear na evidência dos exames que podem provar que… “isso, ou aquilo”. O médico terceirizou seu estetoscópio para a medicina baseada em evidências e entrou na lógica que vai da impotência para a potência. Mas nem tudo amanhã eu vou saber melhor. Freud, ao contrário, foi da impotência para o impossível, na visita a Charcot. E ele não apostou que amanhã seria melhor. O impossível faz da nossa vida um risco, a potência, uma garantia.
- Contrariamente à posição do médico, o psicanalista não tem o “bom para você é fazer tal coisa”. Ao psicanalista interessa saber se a pessoa é coerente com o que diz, se se implica no que diz e se se responsabiliza pelo que diz. Não há a boa maneira de ser da psicanálise. Uma psicanálise exatamente começa quando a pessoa se implica na sua queixa. Encontramos essa referência no texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder, em que Lacan, refraseando Freud, fala de retificação subjetiva onde Freud chamou de análise de prova. Retificar algo subjetivamente é fazer a pessoa se incluir no seu sintoma. Isso não é nada evidente, porque segundo o bom senso, a gente só gosta do que faz bem. No entanto, a gente gosta também, além do meu bem, meu mal, como cantou Caetano Veloso. E não é na lógica da psicologia positiva de bem e mal que se espelha a realidade humana.
- O jogo do discurso científico e do discurso tecnológico. O discurso da ciência tem o poder de fazer saber. O discurso da tecnologia tem o poder de saber fazer. Estamos vivendo a época, fruto da revolução tecnológica, em que pela primeira vez “podemos mais do que queremos” (JF). Quando a gente pode mais do que a gente quer, a gente desloca o limite das nossas ações, podemos ir mais longe. Quem vai parar a máquina não é a própria máquina. Esse circuito foi refraseado por Joseph Schumpeter, com o nome de Destruição Criativa ou Criação Destrutiva. E Luc Ferry tem um livro só sobre ele. No domínio da vida humana temos a questão do limite a cada instante: quantos óvulos uma moça irá congelar? Embrião é vida humana, ou não? Se quisermos mudar de tema e falar da morte: o cineasta Jean-Luc Godard fez opção pelo suicídio assistido. Freud também, quando já não suportava mais as dores da sua mandíbula decorrente de um câncer que o acompanhou por anos e anos e anos. Quando o mal cheiro o envergonhava e a dicção o proibiu de fazer as Novas Conferências Introdutórias da Psicanálise, Freud pediu para ser morto pelo seu médico. E, em outubro de 2022, aguarda na fila de espera, o galã do cinema Alain-Fabien Maurice Marcel Delon, ex-ator franco-suíco, conhecidíssimo nas décadas de 60 e 70. Além do suicídio assistido, temos distanásia que é o prolongamento da vida além dela mesma, além do coma. Temos a ortotanásia, enfim temos um cardápio da morte. Isso diz respeito à responsabilidade que temos frente à nossa vida, o que faz com que, ao contrário do que os psiquiatras pensavam, é a psiquiatria que vai desaparecer, que está desaparecendo, e não a psicanálise. E, só tem condições de voltar a aparecer se se juntar à psicanálise. Lacan não foi muito bem aceito no seu texto, porque o que ele diz é que a saída para a medicina é a psicanálise.
- O discurso da ciência não se justifica cientificamente. Exemplos para clarear: o discurso da ciência cria a bomba atômica, mas não se joga bomba atômica por determinação científica. Outro: o discurso da ciência fez a vacina contra o COVID-19, já a utilização da vacina é uma decisão política, não científica.
- Temos hoje três medicinas: medicina do passado (restitutiva), medicina do presente (cosmética) e medicina do futuro (preditiva). Hoje adoecemos frente à ameaça do que vamos ter. É o que vemos acontecer na Clínica de psicanálise do centro de estudos do genoma humano da USP[1], a pessoa precipita o sintoma sobre ela mesma.
- A inteligência artificial irá substituir o médico? Temos de diminuir o analfabetismo digital para trabalhar na contraparte da inteligência artificial. A rapidez e a precisão da inteligência artificial são muito maiores do que a capacidade humana de interpretação de um raio X, por exemplo. O cérebro da inteligência artificial desenvolve capacidades muito superiores ao humano. Não há chance nenhuma de competir. Quem de nós vai competir com a memória do telefone? Daqui a cinco anos teremos um chip do Google implantado no nosso cérebro. Jorge Forbes faz pensar: se análise é a cura da memória, vamos ter de inventar a cura da lembrança. Com um chip desses como eu vou poder me enganar? Se a gente não se engana na vida, a gente sofre: os não tolos erram, título de um seminário de Lacan. Estamos a caminho de não ser tolo. Como eu vou dizer eu te amo, se eu não puder ser tolo? A inteligência artificial põe em risco a sobrevivência do radiologista, do dermatologista. Isso quer dizer que o médico vai desaparecer? Não, quer dizer que o médico que se esforçou tanto para dizer que a opinião dele deveria ser questionada, ele mesmo ficou questionado. Também por isso é que a psicanálise é a salvação para a medicina, porque a inteligência artificial, naquilo que ela puder substituir o médico ela o fará com grande vantagem para ela, não para o médico. Ser a contraparte da inteligência artificial não é ficar disputando com a inteligência artificial, mas é saber que a inteligência artificial é um não-todo. A inteligência artificial não tem a possibilidade da feitura desse não-todo, por isso se diz que até hoje só temos inteligência artificial fraca. Inteligência artificial forte será aquela que um dia conseguir fazer o que a nossa inteligência faz: duvidar, angustiar, errar, voltar, perceber e mudar. O dia que ela conseguir fazer isso, nós teremos inteligência artificial forte. Como a essência humana é vazia, ela não é capturável pelo algoritmo. Nossa essência é vazia ou esburacada, nas palavras de Lacan.
Com Lacan, em 1966, no Hospital da Salpêtrière
Nessa segunda parte da conferência, Jorge Forbes retoma o texto que lhe serve de base para a discussão atual e ele, exatamente se ocupa de mostrar o quão atuais são alguns dos aspectos levantados por Lacan, naquele colóquio, há 60 anos, sobre a perda do lugar privilegiado de regente da saúde, lugar cedido aos interesses dos laboratórios e à burocracia dos protocolos.
É clara a posição de Lacan, alerta Jorge Forbes: ele está denunciando o lado cientificista que a medicina tomou e o médico se perdendo em sua função primeira onde a medicina nasceu, a medicina hipocrática.
Os médicos viraram, segundo posição de Jacques Lacan, em 1966, operadores da indústria farmacológica e da indústria mecânica para se obter um determinado tipo de tratamento padronizado e isso só pode ocorrer se cumprir os objetivos dessa indústria, donde a necessidade desses protocolos que possam ser medidos, estabelecidos, contados, feitos em gráficos que justifiquem uma medicina baseada em evidências.
Observemos que o problema aqui não é a evidência científica, evidentemente, mas o seu uso para além do campo que ela poderia e pode fazer coisas fundamentais. O problema é o cientificismo.
Seguem as passagens do texto lacaniano, selecionadas por Jorge Forbes, nessa chave de leitura:
Primeira:
“É no ponto em que as exigências sociais são condicionadas pelo aparecimento de um homem que sirva às condições de um mundo científico que provido de novos poderes de investigação e de pesquisa, o médico encontra-se face a novos problemas. Quero com isso dizer que o médico nada mais tem de privilegiado na organização da equipe de peritos diversamente especializados nas diferentes áreas científicas. É do exterior de sua função (médica), especialmente da organização industrial que lhes são fornecidos os meios, ao mesmo tempo as questões, para introduzir as medidas de controle quantitativo, os gráficos, as escalas, os dados estatísticos através dos quais se estabelecem, indo até uma escala microscópica, as constantes biológicas. Do mesmo modo descola-se a evidência do sucesso, condição para advento dos fatos. A colaboração médica será considerada como bem-vinda para programar as operações necessárias para a manutenção do funcionamento deste ou daquele aparelho no organismo humano em condições precisas, mas afinal de contas o que isso tem a ver com aquilo que chamaremos da posição tradicional do médico? O médico é requerido em sua função de cientista fisiologista, mas ele está submetido ainda a outros chamados. O mundo científico deposita em suas mãos o número infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos químicos ou biológicos, os coloca à disposição do público e pede ao médico, assim como você pede a um agente distribuidor que os coloque à prova.”
Essa forma de entender a medicina, faz notar Jorge Forbes, é não entender a demanda do paciente e esse texto O lugar da psicanálise na medicina põe em relevo a demanda do paciente. O que pede um paciente não tem nada a ver com o que a gente acha que ele deveria pedir e seria necessário aos médicos ouvirem a demanda do paciente.
O que estamos dizendo? Que o médico quando vê uma pessoa numa cadeira de rodas sem poder mexer o braço e a perna, cabisbaixa e falando pouco, ele vai dizer que a mulher está deprimida e precisa de um antidepressivo. Mas, não necessariamente, como mostra o caso relatado na já citada Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano na USP, em que essa pessoa recebida em cadeira de rodas precisava na verdade se tratar de suas escolhas amorosas, de seu amor por trastes. Estava casada pela segunda vez com um. Ouvida pelo psicanalista não disse uma palavra se queixando de sua paralisia e do uso da cadeira de rodas. O sofrimento humano não é evidente e categorizável, ele é localizável na escuta do singular.
Segunda passagem:
“Quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, não digo que ele espera pura e simplesmente a cura. Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente diferente, pois isso pode implicar que está totalmente preso à ideia de conservá-la. (A pessoa quer ficar doente) Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente e, em muitos outros casos, ele vem pedir de modo mais manifesto que vocês o preservem em sua doença, que o tratem de maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença (confortavelmente doente) será que terei que evocar a minha experiência mais recente? Outro dia mesmo um formidável estado de depressão ansiosa permanente que durava já há mais de 20 anos, o doente veio me encontrar no terror de que eu fizesse a mínima coisa que fosse. Diante da simples proposta de me rever em 48 horas, a mãe dessa pessoa, temível, que durante esse tempo tinha se acampado em minha sala de espera tinha conseguido arranjar as coisas para que isso não fosse possível (…)”.
Feito esse recorte para evidenciar o aspecto da demanda, Jorge Forbes segue para a passagem que dá título ao texto de Lacan, onde ele diz que a psicanálise é o futuro da medicina.
“O que indico ao falar da posição que pode ocupar o psicanalista é que atualmente ela é a única de onde o médico pode manter a originalidade de sempre (de Hipócrates até hoje) da sua posição, qual seja, daquela de alguém que tem que responder a uma demanda de saber, ainda que isso possa ser feito conduzindo-se o sujeito a voltar-se para o lado oposto das ideias que emite para apresentar esta demanda. O que o médico poderá opor aos imperativos que fariam dele empregado dessa empresa universal de produtividade? Não há outro terreno que não essa relação por meio da qual ele é o médico, ou seja, a da demanda do doente. É no interior dessa relação firme em que se produzem tantas coisas que está a revelação dessa dimensão em seu valor original que nada tem de idealista, mas que é exatamente aquilo que diz a relação com o gozo do seu próprio corpo. Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, e a meu ver o médico deve prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Sigmund Freud.”
Assim Lacan termina seu texto e Jorge Forbes, a sua conferência.
Tal como Lacan, que não se preocupava em convencer ninguém, a elaboração de Jorge Forbes faz depararem, psicanalistas e médicos, com o fato de que o caminho de “para tudo tem remédio” vai falir porque o que faz falir é o desejo, daí urge que médicos e psicanalistas se reposicionem de modo a refrasear as descobertas originais em seus respectivos campos para lhes reavivar a virulência para tratar dos que em breve chegarão mais adoecidos depois dos tratamentos positivos e cientificistas que estão recebendo.
Helainy Andrade é psicanalista em Varginha-MG e monitora do curso online do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA-SP.
[1] Essa clínica, existente desde 2006, é dirigida por Jorge Forbes e Mayana Zatz e os relatos mais paradigmáticos dos casos ali atendidos constam do livro de Jorge Forbes, Você sofre para não sofrer?, que é também o seu doutoramento em neurologia pela faculdade de medicina da USP.