Por Dorothee Rüdiger
Moreno, 35 anos, vivia dupla paralisia: uma distrofia muscular e um amor não superado
Quem já não provou do feitiço do amor? A literatura nos conta de feiticeiras que encantam homens. É o que ocorreu com o poeta e mago Merlin, o sábio conselheiro do lendário Rei Arthur. Merlin morreu preso em um carvalho por uma linda feiticeira, pela qual se apaixonou perdidamente. O feitiço do amor o tinha paralisado para sempre. O caso de Moreno, portador de uma distrofia muscular e paciente da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP – lembra a lenda do velho mago. O paciente está duplamente preso: pela paralisia do corpo e pela paixão por uma mulher.
Moreno apresentou-se para a entrevista com Jorge Forbes e Mayana Zatz, diretores da clínica, como filho de um casal de aposentados. Penúltimo de sete filhos, percebeu que tinha uma doença degenerativa quando, aos oito anos, caía frequentemente. Preso a uma cadeira de rodas desde os 22 anos, Moreno casou-se e teve uma filha. Cuidar da família lhe é difícil: com a formação escolar incompleta, vivia de auxílio-doença.
A paralisia e a penúria dariam para levar, não fosse Moreno, como diz Jorge Forbes “um arruinado pelo amor”. Um dia, permanecendo em casa enquanto a esposa, a Morena, ia trabalhar, resolveu invadir sua rede social. Descobriu que ela ainda era apaixonada pelo “ex”, que não era “flor que se cheirasse”, em suas palavras. Moreno expulsou a esposa de casa, mas não queria a separação judicial. Preferia sofrer. O analista o convida a escolher entre a invenção de outra vida ou a “salada amorosa”.
Há magia contra o feitiço do amor?
Moreno está à procura de um antídoto contra o sofrimento do amor. A magia da psicanálise se depara com Morena, uma feiticeira do amor. Bem comportada e religiosa, a mulher atraente adora cair na night com as amigas. Já o “outro” é um “bandido”, que Moreno está com vontade de “mandar eliminar”. “Vai ser ótimo. Agora vai ser sua vez de receber visita íntima”, comento. O assunto morreu ali.
Moreno começou a rir da paixão. Contou-me do armário cheio de lembranças que Morena deixou com ele. “Tipo o fio de cabelo comprido no meu paletó?” pergunto, lembrando que a música sertaneja canta paixão e a dor. Não esperando que uma alemã conhecesse música sertaneja, Moreno caiu na gargalhada. Separado e parado no portão de casa para olhar Morena de longe a desfilar na rua “curtindo a dor”, o paciente estava numa posição de espectador da sua própria vida. Cansado desse papel, Moreno voltou a sair com os amigos e a paquerar as moças. E Morena deixaria? Não. Ela se faz de amante do próprio marido. Voltaram a conviver.
Deixar de ser objeto do outro
Moreno foi se dando conta de sua posição feminina. Espera o outro lhe dar a atenção. Confessa: “Me acomodei.” Incomodado com isso, descobre que pode ganhar dinheiro arrumando aparelhos eletrônicos. Seu sonho de consumo é um transfer que lhe permitiria a movimentar-se sozinho. Seria um passo a mais para deixar de ser tratado pela família como “inútil”.
Começando a estudar, trabalhar e deixar de ser o objeto da compaixão, Moreno começou a tomar atitude. Mas suas dores amorosas continuaram. “Me alimento de dor,” disse. “Prefiro outro prato,” respondi. No entanto, desconheço a fórmula do antídoto contra uma paixão. O que fazer então com o amor? Ou melhor, o que fazer com o que Lacan chama de “a não relação sexual”?
Há quem faça belos versos, por exemplo, como os de Ary Barroso que Lamartine Babo transformou na música Rancho Fundo. Cantada por Chitãozinho e Xororó, a canção leva-nos a perceber que todos nós somos “Morenos”. Curtimos, ao menos de vez em quando, uma dor e uma saudade, seja isso no “rancho fundo” ou, então, na cidade.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo