3 notas sobre o Kitsch
Letícia Genesini
O kitsch está por toda parte. Quem afirma isso é Gilles Lipovetsky que, em recente conversa com Jorge Forbes, durante a Aula Magna Psicanálise, organizada pela FAAP, contou que o kitsch é seu mais recente objeto de estudo e tema de seu próximo livro.
Precisar o que seria kitsch já é um desafio. Nas palavras de Lipovetsky, o termo, que vem da arte[1], “é o ridículo, é o mau gosto, é a vulgaridade, é o excesso estético – ligado ao medíocre, ao feio, ao vazio… ao que não tem valor”. Jorge Forbes aproxima o kitsch do “cafona”.
Algo curioso acontece, porém, na contemporaneidade, aponta o filósofo. Isto que justamente era tido como o feio, o mau gosto, o vulgar, depois dos anos 80, vira tema da arte contemporânea. O kitsch deixa de ser equivalente a uma arte menor, a uma falta de senso estético, ao sem valor, para entrar no Louvre e ter obras avaliadas em milhões de dólares, como é o caso do trabalho de artistas como Jeff Koons e Damien Hirst.
Jorge Forbes lembra a frase de Hegel: “A arte é uma representação sensível de uma ideia de época”. É nesse sentido que Lipovetsky afirma que “o kitsch não é simplesmente uma estética, mas um modo de vida”, baseado em uma lógica norteadora: a da superabundância, do sempre mais. Primeiramente, o kitsch esteve associado ao espírito da nova burguesia “obcecado pelas coisas[2]”. Em um segundo momento, nos anos 50, temos o neo kitsch, ligado ao American Way of Life. E hoje, pelo fortalecimento do capitalismo e pela dinâmica de individualização, coloca o filósofo, o kitsch mais uma vez se atualiza:
“O kitsch está em todos os lugares, porque é todo nosso universo material cotidiano que incita, estimula o consumismo. Nonstop. Recebemos mais de mil mensagens publicitárias por dia, nas grandes sociedades. Os anúncios publicitários estão por todos os lados, na Internet, na rua, nas revistas… As lojas agora estão abertas, nonstop. Mesmo de noite. E na Internet, todo mundo consome de dia ou de noite, no avião ou no trem, por todos os lados, com seus smartphones ou seus computadores, podemos fazer pedidos, nos informar, escolher um hotel, reservar um restaurante, ver um filme, uma série na Netflix ou na Amazon, etc.”
O excesso torna-se a marca da pós-modernidade[3].
1. O EXCESSO & A FALTA
Se o excesso é a marca da pós-modernidade, para além do plano econômico, é também porque vivemos uma Epidemia de Real[4]. Saímos de um mundo vertical, pautado pelo simbólico, e entramos na primazia do Real, como apontou Jacques Lacan ao desenvolver sua segunda clínica, e como trabalha, hoje, Jorge Forbes em seu conceito de TerraDois[5].
É próprio do simbólico o trabalho de encerrar limites, definir padrões, estabelecer que o que é, é, e o que não é, não é. Em outras palavras, traçar um metro comum ao qual você se conforma — reconhecendo-o como a justa medida — ou contesta — se colocando à sua margem. Já o Real é “o que não tem medida, nem nunca terá”[6].
Se o excesso é a marca da pós-modernidade, é também porque nossa Era é radicalmente humana. O primeiro metro que organizou nosso mundo foi a natureza, em seguida, a religião, mas nenhum deles nos bastou. Após negar as duas primeiras transcendências, buscamos, na terceira, estabelecer um metro humano, acreditando ser ele, a razão. Mesmo à razão, porém, algo da experiência humana ainda escapa. Assim, no exercício de fazer do homem a medida de todas as coisas, vimos que não há um metro universal que baste para conter a vida humana, esta que é sempre variável, como coloca Jorge Forbes. Nasce, então, um segundo humanismo, desmedido. E aquilo que não se mede, excede.
A psicanálise muito fala da desmesura humana. Lacan, em seu “O Estádio do Espelho” mostra como nem o simbólico, nem o imaginário dão conta da tentativa de capturar o humano, algo sempre fica fora da representação. Há um resto, um buraco, que Lacan positiviza: algo falta, por isso, pede mais.
Na mesma lógica, temos o barroco, que sempre insiste em um ornamento a mais, lembra Jorge Forbes: “O barroco é uma representação que excede. E, nos termos psicanalíticos, o excesso de representação é o gozo, aquilo que excede às dimensões simbólicas. (…) (Quando) há uma ruptura entre a representação e o excesso, o excesso é necessário porque a representação não é suficiente para mostrar esse gozo”. Não à toa, na capa do Seminário XX de Jacques Lacan, Encore (“Mais, Ainda”, na tradução em português), o seminário sobre o gozo, vemos o excesso através da estátua “O Êxtase de Santa Teresa”, do escultor barroco Bernini.
Devemos lembrar, também, dos significados múltiplos contidos na palavra: Encore. É, em uma instância, o pedido à repetição. Encore, dizemos ao final do espetáculo. Mais do que um bis, porém, é a repetição que não se satisfaz. É ainda aquilo que insiste, diz o inglês still – por não reconhecer a coisa em sua simbolização, não encontra uma solução, e perdura, pairando no ar, e pedindo sempre mais. Dita em voz alta, ela traz ainda a polifonia en corps, no corpo — o gozo, não cabendo na simbolização, toca o corpo.
Sim, o excesso se acha no hiperconsumo, na avalanche de informações, na multiplicidade de formas de gozo que essa nova Era nos traz. É preciso um olhar atento, porém: se, por um lado o excesso parece nos bombardear, por outro, somos nós que produzimos excessos na busca de tatear novos limites, recebendo sempre a resposta — Mais, Ainda…
2. A REPETIÇÃO & O NOVO
O excesso não se satisfaz. A cada resposta, há uma nova demanda. Nesse sentido, Lipovetsky aponta uma íntima relação do kitsch e seu excesso com a lógica de inovação permanente do capitalismo. É preciso produzir e inovar continuamente a fim de gerar novos desejos. Desejo do quê? Do novo.
Saber o que é o novo, porém, não é tão óbvio assim.
Em 1954, um jovem fez algo novo. Quando Elvis Presley grava seu primeiro single, “That’s Alright”, foi “o momento que o mundo mudou”[7]. A canção não era nova, havia sido composta há mais de uma década e fazia parte do cancioneiro popular do sul dos Estados Unidos. Os instrumentos não eram novos, nem sua combinação. Elvis deu um ritmo acelerado ao andamento, mas mesmo essa novidade, muitos vão dizer, já estava presente na música da época e que Elvis, simplesmente, soube mesclar suas referências.
De fato, Elvis era um eclético, como caracterizou Jerry Schilling, amigo de infância, membro da Memphis Mafia. O country, o gospel, o blues, a vida no bairro negro de Tupelo, na efervescente Memphis, os bares e a moda de Beale Street, o estilo de um outro músico, o andar de um homem na rua… tudo era referência para Elvis, e tudo isso existia antes dele. Ainda assim, previamente a este single, nunca dantes havia existido no mundo Elvis Presley. Depois dele, Elvis torna-se um estilo, inconfundível.
“O novo”, afirma Jorge Forbes, “não é o ver o nunca dantes visto no estranho, mas ver, no sempre visto, o que nunca foi visto antes”[8].
Muito do que ficou de Elvis é pastiche de si mesmo: o cabelo, as costeletas, as capas, as roupas e os cintos, a brilhantina, os paetês, o Cadillac cor de rosa, os filmes, os portões de Graceland, os shows em Las Vegas, o merchandising… Uma parte disso perdura como uma caricatura do cafona. Ainda assim, década após década, algo na música permanece familiar e incognoscivelmente novo, de tal modo que só podemos explicar dizendo: é Elvis.
Como afirmou o próprio Gilles Lipovetsky, há kitsches e kitsches.
3. O SÉRIO & O RIDÍCULO
O excesso pode ser desastroso. Nas palavras de Lipovetsky, a lógica da superabundância, do sempre mais, “nos conduzirá ao abismo, à destruição”. Ele se refere, claro, à crise climática, ressaltando que vivemos “um excesso com risco de causar uma crise planetária, de criar uma Terra incompatível com a vida.”
Uma tentativa de resposta, segundo o filósofo, para o imperativo kitsch é o imperativo de sobriedade. Valores que vêm desde a Grécia clássica, como a doutrina do meio termo de Aristóteles e a vida prudente dos epicuristas, hoje, ganham uma nova roupagem em movimentos como o minimalismo que propõe um modo de vida reduzido às necessidades.
Que a espiral do excesso possa ser catastrófica, não há divergências, a questão é saber: para o humano, o que seria o necessário, a justa medida para a vida?
Seguindo uma das correntes críticas da estética kitsch, a arquitetura funcionalista, veremos um discurso contra todo tipo de excesso, de ornamento, de qualquer elemento a mais que o necessário. Um chamado ao essencial, o famoso Less is More. Trata-se, porém, não da descoberta da essência, mas da criação de um discurso.
Ao contrário da abelha, como lembra Jorge Forbes, que por milênios constrói a mesma colmeia, não existe uma única arquitetura funcionalista e sim a arquitetura de Adolf Loos, de Le Corbusier, de Mies van der Rohe… Se, para a abelha, a natureza oferece uma justa medida, quando o assunto é a vida humana, não há um estado natural para nos bastar. Cada projeto, cada prédio, cada magnífica obra da arquitetura funcionalista, por mais que tente, não é capaz de dizer o que é esse essencial que busca e, por isso mesmo, tenta-se outra vez. É o nosso estar no mundo: não havendo para o homem uma essência, a coisa em si, resta a ele construir um discurso, para sempre impreciso, para sempre pedindo uma tentativa a mais.
Para o ser humano, não há um bem-estar no mundo. Mesmo a expressão mais minimalista surge por um descontentamento das coisas como elas são, é um ímpeto do desejo: lá, onde não havia nada, o homem ergue sua casa. Quando o assunto é a vida humana, para além da necessidade, há o desejo. Para além da justa medida, há um resto, uma estranheza que não encontra garantia ou apaziguamento frente ao outro. Há ainda o ridículo.
Lacan, que usava o excesso como uma ferramenta de estilo e transmissão, a ponto de ser comparado com os clowns, “sabia suportar o ridículo, e não cedia frente ao ridículo de sua própria figura”[9], afirmaJorge Forbes. A seriedade para Jacques Lacan não era sinônimo de uma sisudez obsessiva, para ele “ser sério na vida é fazer série; fazer série é poder transmitir algo de si, não a partir de um ideal, mas a partir de uma causa.[10]”, continua Forbes.
O imperativo da sobriedade não irá funcionar. Muito menos através de “uma ecologia punitiva e moralizadora” que valoriza a sobriedade “apenas como uma resposta ao medo da catástrofe”, ressalta Lipovetsky. É preciso uma outra ecologia, uma que saiba, como a psicanálise, trabalhar com o desejo, ao invés de tentar o calar. “O ser humano não é para principiantes” [11], afirmou Jorge Forbes, nem nossos tempos.
[1] Segundo o dicionário etimológico de Friedrich Kluge, a palavra “kitsch” surgiu entre pintores alemães em torno de 1870.
[2] Expressão usada por Gilles Lipovetsky na Aula Magna.
[3] Lipovetsky usa o termo “hipermodernidade”.
[4] Expressão de Jorge Forbes.
[5] As articulações dessa seção se baseiam nos estudos do Curso da TerraDois, conduzido por Jorge Forbes, fazendo constante referência a sua teoria e sua transmissão da Clínica do Real.
[6] Verso da canção “O que será, que será? (À flor da pele)” de Chico Buarque e Milton Nascimento.
[7] Fala do músico Robbie Robertson para o documentário da HBO “Elvis: The Searcher”
[8] Citação do artigo “Já vi, já sei!” de Jorge Forbes, publicado na revista IstoÉ Gente, agosto de 2014.
[9] Fala do encontro de 09/08/2022 do Curso da TerraDois, documentado no texto de Helainy Andrade “Lacan, um escultor barroco do discurso – Suportar a cafonice, o outro nome do ridículo.”
[10] Citação do texto “Proust”, resenha, por Teresa Genesini e Elza Macedo, do comentário de Jorge Forbes, por ocasião do lançamento do livro Proust – a violência sutil do riso, Leda Tenório da Motta, Editora Perspectiva, na noite de 20 de setembro de 2007, na Livraria Cultura – São Paulo.
[11] Citação do texto “O ser humano não é para principiantes”, de Jorge Forbes, publicado na edição 142 da revista HSM.