O estrategista e a abertura de outro mundo 22/08/2013

Por Dorothee Rüdiger

Beneficiado por uma análise que privilegia a responsabilidade e a surpresa, adolescente abre-se para outro mundo: o do amor

O boné tampando parte do rosto, cara de poucos amigos e uma postura de “quem não quer nada com nada”. Foi assim que Paulo, a quem dei o epíteto de “o estrategista”, apresentou-se à primeira entrevista com Jorge Forbes e Mayana Zatz, há dois anos, no Centro de Pesquisa do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Tinha, à época, 15 anos. Portador de uma distrofia fácio-escápulo-umeral que lhe afeta, principalmente, as pernas, veio praticamente “arrastado” por sua mãe, que não se conformava com a rebeldia do filho. Não podia ser feliz, porque a doença lhe tirava a felicidade. Empacou diante dos prognósticos.

Paulo se trancava em casa, ia mal na escola e não queria frequentar as sessões de fisioterapia, além de outros benefícios oferecidos pela Associação Brasileira de Distrofia Muscular (ABDIM). “Ela fala que é preciso falar com alguém”, comentou o jovem, diante da atitude da mãe de trazê-lo para as sessões de psicanálise. A esse comentário, Forbes respondeu com um singelo “Por quê”? Silêncio. O psicanalista continuou: “você não sabe por que não concorda?” Paulo não concordava. “Tenho que pensar bastante”, disse. Forbes não cedeu: “Já pensou bastante. Você quer?” Paulo só foi ter certeza na semana seguinte quando, numa entrevista “relâmpago”, declarou querer fazer o tratamento psicanalítico.

Rebelde, desconfiado e inibido, recebi o jovem para a primeira sessão. Enquanto falava, escondia-se por detrás da aba de seu boné. Tudo era “uma chatice”, “uma bosta”: o pai, “mais velho que meu avô”, a escola, “chata”, o irmão, “um pentelho”. Na sua visão, a maior das “bostas” era o seu futuro. A julgar pelos diagnósticos médicos e autodidatas, ele tinha plena razão. Surpreendido com a pergunta se ele acreditava em tarô, se ele tinha sonhos, começou a falar de si.

Não se dava bem com o pai, implicava com ele e ficava disputando o uso o computador. Contou, inclusive, que já tinha sofrido agressões, principalmente verbais, por conta da doença. “Amo e odeio meu pai”, disse. Imediatamente, perguntei: “E o que você faz?”. De repente, caiu a ficha dele: “estou ficando assim, botando defeito em tudo”. Com essa fala, decidi encerrar a sessão e ele foi embora. No encontro seguinte, Paulo e o pai tinham feito as pazes.

Aos poucos, ele foi levantando a aba do boné, abrindo a guarda. Era decidido a não fazer fisioterapia e resolveu mudar de ideia quando refletiu sobre o acaso no futebol. Torcedor do São Paulo F.C., admitiu que o goleiro “pode tomar gol ou não”.

Um dia, chegou sem boné e, olhando nos meus olhos, contou as suas tentativas de ganhar dinheiro. O que inicialmente podia contar de sua carreira profissional, por exemplo, era sua vida de “maloqueiro” à beira da delinquência juvenil. Emprestando consequência às histórias que contava, perguntei-lhe, como fosse a coisa mais natural do mundo, se ele já tinha conhecido o Conselho Tutelar e, quem sabe, até o Juiz da Infância e da Juventude. “Claro que não!”, foi a resposta indignada do rapaz. Nesse momento, foi encerrado para sempre o papo sobre a vida de “maloqueiro” e a carreira nesse ramo de atividade.

Aos poucos, a aba de seu boné foi se levantando e Paulo começou a falar do “amor-ódio” do pai, da angústia que a doença lhe provocava, de seus amores não menos angustiantes. A análise estava se desenrolando, o boné sumindo da composição do look do paciente. Assumiu sua vaga na ABDIM para praticar fisioterapia, hidroterapia e reforço escolar.

No entanto, sessão após sessão dava para perceber que Paulo, um “estrategista” formado a base do jogo de videogames Counter Strike, servia-me um rico cardápio de invenções para sua vida para exatamente responder à pergunta que eu lhe propunha: “Por que você não vai à escola?” A cada “o que você pretende fazer?”, ele respondia com uma novidade. Inventou de ser campeão de Counter Strike, pintor, ator, músico, comerciante na internet, web-designer… não levou nada disso adiante. Acabou não querendo mais frequentar a fisioterapia e voltou à sua posição de rebelde. Mas, percebi que não era ele quem resistia. Algo dava errado na sua análise, pois, ao invés de, perguntar na linha do senso comum, “por que você não vai à escola?”, cabia a mim, como analista, indagar: “e porque você deveria ir à escola?”

Era, portanto, necessário focar a análise na questão da sexualidade do rapaz e, nesse quesito, ele tinha a reclamar. Revelou que não queria o tratamento na ABDIM, porque muitas pessoas, principalmente mulheres, entravam e saíam no banheiro masculino. Ele tinha vergonha de sua nudez. Fiz uma intervenção: “Elas pensam que quem não tem perna não tem pau. E pau você tem.” Nem precisava dizer tanto, pois Paulo concluiu rapidamente: “Acham que somos lesados, capados, brochas”. Então resolveu “quebrar o pau” com os responsáveis da associação e, com isso, preservar sua intimidade. Assim, de quebra, fez amizade com os outros rapazes que também frequentavam o local e sensibilizou-se com a morte precoce que está no ar nesse lugar.

Pouco depois disso, Paulo, aquele que só queria dormir, me contou um sonho recorrente. Sonhava estar num avião que subia e, depois, caía e se espatifava no chão. Interpretava esse sonho das mais diversas maneiras até que um dia, apavorado, me telefonou. “Esse avião não tem piloto?” – perguntei.

A resposta veio de imediato, quando ele apareceu no Genoma “dançando” em uma cadeira de rodas que ele pode usar para se deslocar mais facilmente. Assim, fez caminhadas na praia, foi ao circo, passeou… Mas, não foi somente assim que o jovem passou a se mover. Pediu para falar novamente com Jorge Forbes, de quem ele não perde um programa de televisão ou vídeo no Youtube. Atualmente, está angustiado com a questão mais intrigante do que a doença: o amor. “E se ela disser sim? E a responsabilidade?” No reencontro com Forbes, mostrou-se tocado pelas questões da vida, da morte e do amor. E agradeceu: “A psicanálise me abriu outro mundo”.

Dorothee Rüdiger é psicanalista, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo