Dorothee Rüdiger
Vou contar uma história, a história do Dragão Chinês. Foi contada por um então jovem professor universitário que começou, como eu, sua carreira acadêmica numa universidade do interior paulista. Era bem tarde da noite, quando esse colega, um verdadeiro Lorde em seu terno impecável e com sua postura aristocrática, chegou ao campus da universidade. O guarda-noturno, com presteza, indicou ao professor um hotel nas redondezas, cujo nome era Dragão Chinês. O professor tomou um taxi e foi procurar o hotel. Chegando ao Dragão Chinês, o “Lorde” estava pedindo uma suíte para o primeiro pernoite na cidade, quando recebeu do recepcionista o seguinte conselho:” É melhor o doutor procurar outro hotel, porque o Dragão Chinês … é foda!”
Essa história do Dragão Chinês veio a minha memória quando preparava minha contribuição para desvendar a correlação entre o ato sexual e o ato analítico, tal como feita por Jacques Lacan em sua primeira aula do Seminário XV.
Jacques Lacan começa seu seminário XV brincando com o público dizendo algo como: “Quem assistiu a última aula do meu último seminário sabe do que estou falando, quando comparo os dois termos compostos por dois registros, o ato sexual e o ato analítico. Quem não foi a essa aula, vai ter que assistir esse meu novo seminário inteirinho!”
Não assisti aquela aula, evidentemente. Fui, para encurtar o caminho, consultar o chat GPT sobre “acte sexuel”, em francês, e “Geschlechtsakt” em alemão. Recebi como resposta uma tarja vermelha dizendo que minha pergunta era “inapropriada”. Nem ousei perguntar do Dragão Chinês… Não dá para entender tamanho pudor da máquina, já que a palavra “composta por dois registros”, como observa Lacan, soa um tanto quanto burocrática em relação ao que possa nomear.
A assepsia do termo utilizado por Lacan deve ter sua razão de ser. A pesquisa sobre o ato sexual e o ato analítico (e quem sabe sobre os segredos do Dragão Chinês) não prescinde, portanto, da leitura da última aula do seminário XIV sobre o fantasma, que obtive na dark web acadêmica, já que o livro demoraria semanas para chegar em minhas mãos.
A dita aula trata da associação livre e da “interpretação ativa”. Lacan transmite, com base em Sigmund Freud, que no inconsciente a regra da não-contradição entre o verdadeiro e o falso, o positivo e o negativo, o sim e o não, é suspensa. Para Lacan, Freud nos ensina que o sonho não é o inconsciente. É, antes, “semblante que preserva uma verdade inconfessa”. Diante disso, qualquer interpretação é falha. O discurso analítico trabalha com uma verdade furada. A interpretação tem sucesso porque é sugestiva para pôr o paciente em movimento, já que a “verdade” de seu inconsciente é rebelde, resiste à interpretação.
Sendo psicanalistas sabemos da dificuldade de capturar o inconsciente e seu desejo em nossas próprias análises, por meio de nosso próprio “papo furado”, diz Lacan. “O psicanalista responde com sua dificuldade de ser”, com sua dificuldade de tanger o desejo. Que o desejo escapa o analista experimenta, como todos os humanos, no ato sexual.
Por que Lacan usa o termo tão asséptico “ato sexual” ? Afinal, como ele mesmo diz, o termo é chato.
Vamos fazer uma excursão para a primeira aula, dessa vez, do seminário XX Encore, “no corpo” ou “mais ainda”. Aqui Lacan avança e refina as teses esboçadas nos seminários anteriores. Explicita pelo “explícito”.
Lacan nos apresenta, na imaginação que seu discurso suscita, um casal na cama com seus gemidos, seus pedidos de “mais”, com suas besteiras sussurradas ao pé do ouvido. Nessa cena “de pleno gozo” o direito está presente, porque é “a lei que estreita o gozo”. Em outras palavras, a sexualidade só pode ser experimentada pelo ser humano enquanto delimitada pela civilização. Sexo é vivido somente como gozo, como aquilo que buscamos incessantemente realizar para darmos conta da castração, da falta , do real. Não há para nenhum de nós satisfação plena. Daí o “quero mais”.
Voltando para a última aula do seminário XIV, apreendemos que a “copulação” é possível ser realizada no quadro da civilização, mas não tange o desejo, porque este é rebelde a ela. O que acontece com um casal num ato sexual (assim nomeado pelos “civilizados”) são experiências distintas: o homem “goza da sua ereção”, enquanto uma mulher “experimenta o lance do elevador, quando desce bruscamente”. E o desejo? Ninguém o satisfaz, ninguém o mata. O ato sexual atende a uma demanda dirigida à civilização, ou ao Outro, como quer Lacan. Daí a satisfação ser incompleta.
E é na questão da demanda que o ato sexual e o ato analítico têm seu ponto de encontro. O paciente chega ao consultório do analista com sua demanda de amor, sua demanda de tudo saber. O que pode encontrar no consultório é um analista desejante de deixar o paciente trilhar o caminho de seu desejo removendo os empecilhos à vivência de sua sexualidade.
Não é por um acaso que o consultório do analista se assemelha a um quarto de dormir. O ato analítico, por mais “furado “que seja, uma vez que é linguageiro, pode tirar a histérica “do parlatório”, o obsessivo “da privada”, fazer com que o fóbico não se apavore mais diante do “guarda-roupa”, do “corredor” ou da “cozinha”. O paciente pode encontrar o caminho para a alcova, para o motel, ou para qualquer lugar. Tem gosto para tudo.
Quanto ao Dragão Chinês, nunca soube o que lá exatamente acontecia. E é por isso, que atiça, até hoje, algumas fantasias eróticas.