O desejo e a mobilidade social 13/02/2014

Por Italo Venturelli

Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não de nós mesmos

Cada vez mais, chegam ao consultório dos psicanalistas pessoas bem diferentes entre si, mas com estórias de vida semelhantes a contar. Nasceram na periferia, trabalharam desde a adolescência – enquanto estudavam, formaram-se ou estão em vias de se formar na universidade. No entanto, o sucesso de tanto esforço singular que os sociólogos chamam, genericamente, de “mobilidade social”, não lhes traz a felicidade prometida por quem segue ao senso comum de que “em se estudando, tudo dá”. Não dá.

Isso porque a questão da mobilidade social não se resume a programas governamentais ou privados de incentivo ao estudo. O período de prosperidade pelo qual passa o país, apesar das tempestades econômicas mundo afora, foi capaz de proporcionar a milhões de brasileiros uma boa posição social com direito a realizar os sonhos de consumo. O estudo não somente lhes abriu as portas de melhores empregos, como lhes abriu seus horizontes culturais. Curtem cinema, literatura, música. A consciência política adquirida pela formação intelectual os fez mais exigentes em relação aos serviços públicos.

No entanto, as pessoas deparam-se com uma sociedade que insiste em não somente manter as barreiras de classe social, como também reforçar as diferenças de pertencimento em grupos invisíveis. Enfrentam a sociedade brasileira organizada sem uma razão clara, na qual cada um tem sua turma ou sua paróquia, como dizia Lacan. Isso se percebe nas manifestações de rua que agregam desde grupos pacíficos a criminosos que não hesitam fazer de um rojão uma arma mortífera. Torna-se visível quando “pessoas de bem” amarram uma criança negra no poste, quando vizinhos assustados fecham vias públicas com uma chancela para controlar os transeuntes. Mais drasticamente, as novas identificações “paroquiais” mostram-se quando as bandeiras dos “outros” são queimadas, quando se agridem repórteres que registram o que não se quer nem mostrar, nem ver.

As barreiras sociais, antes delimitadas pelo acesso ao estudo e ao emprego, agora são mais sutis, mais íntimas. Muitas das pessoas que vivem aquilo que se chama de “mobilidade social” chegam para a psicanálise. Trazem a queixa da amarga experiência de sair de um grupo social, para qual passam a ser “os metidos” e chegar a outro, para o qual “não têm berço”. Queriam muito essa conquista. A vontade, o querer, não lhes falta, e nem o desejo. Mas, como sustentar o desejo? Eis a questão.

Para Jorge Forbes, o psicanalista leva a pessoa a tentar responder sobre o que deseja. Ocorre que desejar e querer não são uma dupla harmônica. O desejo é algo muito diferente do querer e da necessidade. Para o ser humano, estar com alguém é necessário. Estar com aquele alguém é desejo. Necessidade é algo que, normalmente, está vinculada à sobrevida do ser humano. Desejo é aquilo que sai do universal da sobrevida e singulariza, tira do grupo. O problema é que aquilo que tira do grupo deixa muito inseguro. Portanto, para dizer que quer o que se deseja, é preciso ter coragem. No entanto, infelizmente, uma grande parte das pessoas é covarde frente a seu desejo e procura, de alguma maneira, identificar-se com um grupo, um movimento, com alguma ideologia, efêmera em tempos pós-modernos, diga-se de passagem. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, reconecta a pessoa com esse ponto fundamental.

Mas não é só isso. Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não de nós mesmos. Não dá para fugir desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, dessa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu “. E esse ponto íntimo independe de qualquer identificação. Encontrá-lo numa psicanálise representa talvez só mais um esforço que as pessoas que partiram em busca de uma transformação em suas vidas tão bem conhecem.

Italo Venturelli é neurocirurgião, psicanalista e Diretor do Hospital Regional do Sul de Minas Gerais