Por Dorothee Rüdiger e Isabel Hamud
O silêncio na metrópole choca. É como se houvesse um toque de recolher silencioso, feito por atores de uma violência que não mostra a cara
São Paulo, 14 de novembro, véspera de feriado nacional com pontes para o final de semana. Acostumada com a pujança da vida estudantil nos bares ao redor das faculdades, o silêncio me assusta. Os bares estão pouco movimentados, nas ruas o trânsito está surpreendentemente tranquilo. Será que essa tranquilidade é o silêncio da morte que chega sem aviso prévio, nas últimas semanas, para cidadãos comuns e fardados que estão nas ruas durante a madrugada?
O silêncio na metrópole famosa por ser “a cidade que nunca para” choca. É como se houvesse um toque de recolher silencioso, feito por atores de uma violência que não mostra a cara. Muitas foram as mortes de policiais e civis nas últimas semanas. E não há uma comoção generalizada. Há silêncio.
O que se percebe recentemente nas regiões “bem frequentadas”, isso é, a violência que não tem rosto, já é uma realidade há tempos na periferia. No bairro de Paraisópolis, por exemplo, a mudança da violência “com cara” para a violência silenciosa ocorreu há anos. “Havia um líder comunitário que botava ordem no bairro”, confidenciou-me uma moradora do bairro. O líder e sua família foram mortos. “A partir de então, sabemos que alguém dá as cartas. Mas esse alguém não tem rosto. Pode ser qualquer um.”
De onde vem essa violência que não provoca a revolta, mas sim o silêncio sepulcral? Uma das respostas plausíveis é a falência do nosso sistema penal, capaz de transformar “batedores de carteiras” em delinquentes de alta periculosidade. É a resposta do Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, um respeitado advogado e professor universitário. Sabemos que o sistema prisional é caótico, e não apenas no Brasil. Ruiu há tempos a ideia de que na prisão o delinquente entra, recebe um “diagnóstico”, um “prognóstico”, um “tratamento”, e sai como um cidadão ressocializado.
No inconsciente, somos todos criminosos. Essa é a tese escandalosa de Sigmund Freud em sua Crônica sobre a Guerra e a Morte, de 1915 . Temos medo da morte. Mas, enquanto choramos a morte de nossos queridos, triunfamos sobre a morte de nossos inimigos. Mais, ainda, para Freud somos profundamente hipócritas, inventando a moral que distingue entre “o bem” e “o mal” para negar os nossas próprias emoções de amor e ódio para com os nossos mais íntimos: pai, mãe, irmãos… Os bandidos são os outros. São ora os assassinos das facções criminosas, ora os que trazem a morte em nome da ordem do Estado. Enquanto isso, nós bons cidadãos, guardamos amores e ódios proibidos no fundo da nossa alma. Freud dixit!
O que assusta na sociedade contemporânea é o fato que a violência não tem rosto. “A violência hoje é surpreendente, não o fora antes,” comenta Jorge Forbes em Você quer o que deseja? Pelo visto, isso não se aplica somente aos assassinatos inusitados em família, mas também aos crimes cometidos em série pelas facções dos dois lados da lei: o crime organizado e os que se arrogam poder para executar os presos em nome da ordem.
Quem vai conter essa violência? Basta pedir paz? Pedir para quem, se essa violência não tem rosto ou abusa do anonimato de uma farda? Ou será que é bom engrossar o coro de quem pede a volta das penas corporais medievais? O silêncio não traz respostas.
A psicanálise, diz Jorge Forbes, propõe a ética do desejo. Para além do bem e do mal, para além do crime e do castigo, a ética é uma tomada de atitude. Que tal começarmos por voltar a reunir as pessoas que não tenham medo de tomar um chope no bar à meia da noite, na véspera do final de semana.