O Cão de Pavlov e o Fracasso de Freud 06/07/2024

Vania Viana

Lacan, nos primeiros capítulos de seu seminário 15, pretende situar a psicanálise em relação ao que chamou de “teorias fisiologizantes” do aparelho psíquico. Teorias que se serviam do modelo de arco reflexo para explicar os efeitos do meio sobre o organismo.

Para isso, utiliza-se de um modelo que é, segundo ele, infinitamente mais sutil que o do arco reflexo. O modelo baseado na concepção do reflexo condicionado, representante do que Lacan chamou de “ideologia pavloviana”. Ideologia porque não se reduzia a Pavlov mas se referia a um sistema amplo de ideias de vários autores em diferentes áreas, inclusive psicanalistas, que visavam a apreensão de dados positivos na construção da “tarefa sublime da ciência” que seria conquistar uma “verdade sólida e inabalável” (Pavlov, 1917). Lacan chega a citar a proposição de um certo psicanalista, feita alguns anos antes, e que lhe fora relatada: “eu não admito nenhum conceito psicanalítico que eu não tenha verificado no rato”. (Lacan, Seminário 15, Capítulo 2 — tradução livre).

Vamos então ao começo dessa história. Ivan Pavlov (1849 – 1936), fisiologista russo, estudando a ação das enzimas no estômago dos animais, interessou-se por um fenômeno que ocorria paralelamente ao seu interesse. Observou que o cão, seu objeto de estudo, salivava ao simples ruído dos passos do tratador que vinha alimentá-lo. Grande pesquisador que era, delineou um experimento para isolar o fenômeno e assim demonstrou como se operava o condicionamento reflexo. Em seu laboratório associou um estímulo, inicialmente neutro, uma campainha ou o som de um trompete, por exemplo, a um estímulo incondicionado, um pedaço de carne, que eliciava uma resposta reflexa, a salivação ou a produção de suco gástrico. O estímulo neutro, o som do trompete, apresentado imediatamente antes do pedaço de carne, repetidamente, tornou-se estímulo condicionado: o cão “aprendeu” a salivar ao som do trompete ou ao toque da campainha. Durante seu experimento, Pavlov operou no sentido de controlar todas as variáveis e eliminar qualquer interferência subjetiva em seu objeto de estudo. Chegou a impor uma multa ao assistente que tentasse explicar a reação do cão de forma subjetiva. Atribuições do tipo: o cão havia “desejado”, “pensado”, “sentido” ou “adivinhado”, não eram permitidas, numa tentativa de disciplinar seus pesquisadores para que fossem “impecavelmente objetivos”. Para ele, uma análise científica passaria por “uma análise experimental do objeto, segundo o método objetivo” usado na física, na química e na mecânica (Pavlov, 1924).

Contemporâneo de Pavlov, Sigmund Freud (1856 – 1939) em seu Projeto para uma Psicologia Científica, texto de 1895, ou Psicologia para Neurologistas, seu nome inicial, fez sua tentativa de inscrever a psicanálise na tradição científica de sua época. Neste trabalho, Freud enfatizava o impacto do meio sobre o organismo e a reação do organismo ao meio. Ele reconhecia as “excitações endógenas”, mas não deu muito mais consideração a elas. Os instintos apareciam como entidades indefinidas, que mal receberam um nome. O Projeto foi abandonado, o próprio Freud não poupou críticas ao seu método de descrever os fenômenos mentais em termos fisiológicos. A obra ficou inacabada e foi rejeitada por seu autor, que tentou por todos os modos destruí-la, sendo publicada apenas em 1950.

Algum tempo depois, em 1917, na Conferência 27, uma das conferências proferidas na Universidade de Viena, sobre a Transferência, Freud ilustra seu método de investigação ao declarar que fora surpreendido, em sua prática clínica, por uma novidade inesperada, algo que se infiltrava furtivamente, que sobrava na soma. Se estivesse num laboratório de pesquisa experimental, ele diria, uma variável interveniente, não controlada e não controlável:

“… após pequeno lapso de tempo, não podemos deixar de
constatar que esses pacientes se comportam de maneira muito
peculiar em relação a nós. Acreditávamos que havíamos
colocado em termos racionais a situação entre nós e os pacientes
de modo que ela pudesse ser visualizada como se fosse uma
soma aritmética. Mas algo parece infiltrar-se furtivamente, algo
que não foi levado em conta em nossa soma. Essa novidade
inesperada assume muitas formas…”
(Freud, 1917)

Freud declara nestas linhas ter fracassado em seu Projeto de uma Psicologia Científica para fundar a Psicanálise. Em seu laboratório, que não era experimental, mas clínico, ele recolheu aquilo sobre o que Pavlov não pode falar por inexistência de método que o replicasse. Freud recolheu o que não entrava na soma, a novidade inesperada, o estorvo, o resto que se repetia em cada tratamento. Freud fez do estorvo a técnica, o motor do tratamento na psicanálise e nomeou o espaço para o ato analítico: a transferência.

Lacan, em sua proposta de situar a psicanálise em relação à “ideologia pavloviana”, faz a leitura do condicionamento reflexo em outros termos.  Segundo ele, Pavlov controlou tudo, menos a dimensão linguageira do experimento, uma vez que ambos, experimentador e experimento estão dentro da linguagem. A campainha, o som do trompete, os mais variados sinais sonoros e visuais são significantes fabricados pelo experimentador e fazem o organismo salivar por um efeito de engano, de substituição. O que está implicado no experimento é o que o significante faz: representa um sujeito para outro significante. O som do trompete representa o sujeito da ciência, desejante de objetividade, a saber, o próprio Pavlov. O experimento pavloviano pode ser definido como efeito do significante sobre um campo, o campo vivo. O reflexo condicionado, demonstrado por Pavlov, então, nada mais é, que a intervenção do significante no real do corpo vivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1950 [1895]). Projeto para uma Psicologia Científica. Publicações Pré-Psicanalíticas e Esboços Inéditos. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol I. Imago Editora Ltda.

Freud, S. (1917). Transferência. Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916-1917. Parte III. Teoria Geral das Neuroses (1917 [1916-1917]). Conferência XXVII. Pag 512. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XVI. Imago Editora Ltda.

Lacan, J. (1967 – 1968). O seminário. Livro 15. O ato analítico.

PAVLOV, I.P. (1917). “A fisiologia e a psicologia no estudo da actividade nervosa superior dos animais”. Em I.P.Pavlov. Reflexos Condicionados, Inibição e Outros Textos. Lisboa: Editorial Estampa, 1971.

PAVLOV, I.P. (1924). “Lições sobre o trabalho dos grandes hemisférios cerebrais”. Em: Em I.P.Pavlov. Reflexos Condicionados, Inibição e Outros Textos. Lisboa: Editorial Estampa, 1971