O café com leite e a Clínica do Real 29/11/2012

Por Claudia Riolfi

Há fracasso na segunda clínica?

“Quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização (…) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus Escritos”.

Jacques Lacan, 1967: 349

Começamos esta contribuição a respeito do fracasso em psicanálise pela seguinte analogia: ele é como o irmão caçula que, de contrabando, nosso amigo trouxe ao jogo. Qualquer criança sabe que, quando se ama o amigo, basta colocar o pirralho para brincar junto. Não é razão para alarde.
O pequeno problema é que os grandes já sabem jogar. O pequeno não. Ora ele não tem as habilidades motoras, ora as cognitivas, ora desconhece as regras. Então, para que nem tudo se perca, basta utilizar uma simples estratégia: colocar o menorzinho no lugar do café com leite.
Posto isto, explicitemos a metáfora: os jogadores experientes são os membros do Corpo de Formação, o jogo é a colocação da psicanálise no mundo e o café com leite, o fracasso.
O café com leite não é nosso inimigo e não está de marcação conosco. Não apareceu em nossa vida só para nos provocar. Todos que tiveram infância o sabem. Muitas vezes, nosso parceiro de jogos, inclusive, se viu forçado a trazê-lo consigo.
Algum problema nisso? Nenhum. O café com leite não machuca quem não tem a expectativa de que ele partilhe do mesmo conjunto de regras e articule os mesmos saberes. O café com leite está fora da paróquia. Bate fora do bumbo. Seu gozo, ao brincar, é opaco, por excluir o sentido (LACAN, 1976:566).
Não fala nossa língua, em especial, se ela se chamar lacanês. Tal qual foi registrada, o lacanês é uma língua em extinção. Funciona como língua natural (aprendida da fonte) para poucos que estejam, hoje, vivos no Brasil. Só para citar um exemplo, quando Lacan, aparentemente desacorçoado com o lugar onde tinha escolhido amarrar sua égua, convocava as futuras gerações de psicanalistas para não deixar que as indicações de seus Escritos fracassassem ante aos desafios impostos pelo que lhe parecia ser os impasses crescentes de nossa civilização, a signatária, atual diretora do IPLA, ainda usava fraldas.
Era dezembro de 1967 e, talvez, já nevasse em Roma. No Brasil, certamente o calor era de rachar. A terra continuava rodando em torno do sol e o famoso terceiro abalo narcísico, afinal de contas, não tinha mostrado tanta virulência. Pacientes continuavam rodando em torno de divãs, textos em torno de conceitos, novatos em torno de autores consagrados e, na avaliação do indócil francês, a psicanálise também não tinha saído dos cueiros.
De volta ao antigo Lácio, Lacan declarava, publicamente, que sua dupla missão – interrogar a psicanálise e renovar o estatuto do inconsciente – tinha dado com os burros n´água. Talvez não se possa dizer que ele estivesse se lamentando, mas, no mínimo, explicitando um reconhecimento de que, como professor, o francês não tinha sido lá grandes coisas para os italianos. Ele tinha explicado e ninguém tinha entendido nada.
O tom desta retomada é de franca insatisfação. Suas expressões, inclusive, apontam para isso. “O patético de meu ensino é que ele opera nesse ponto” (p. 346), afirma, sem um pingo de autocondescendência, ao se referir à importância do ato ao analista e à dificuldade de seu reconhecimento. Ele se lamentava que os colegas romanos – e quem mais interessar pudesse – tinham assistido sua conferência em 1953 e feito do inconsciente estruturado como uma linguagem uma bobagem qualquer em torno do recurso à frustração, bobagem esta que só poderia ter sido concebida por quem, durante boa parte de suas aulas, tinha gasto o tempo na cantina tomando café.
Ainda por cima, Lacan afirmava que sequer estava surpreso com o fracasso de suas tentativas. E o pior: ele declarava, para quem tivesse ouvidos para ouvir, sua parcela de responsabilidade na estagnação do pensamento psicanalítico da época. Também ele jogava a regra do jogo: moderava-se em sua vontade de apontar que, desde que fosse assinado por um psicanalista conhecido, um texto poderia ter tolerado em sua exorbitante inépcia (p. 348). Para terminar, o nocaute: se a situação estava assim, isso se devia a uma degradação do simbólico pelo imaginário (p. 349).
Nesse ponto da reflexão, ele não acompanhava um de seus contemporâneos: Michel Foucault (1970), filósofo que, levando o estruturalismo às últimas consequências, creditava, justamente, ao discurso, enquanto instância simbólica, certos efeitos de inércia de pensamento. Para o filósofo, o discurso estava cerceado pelos procedimentos de controle externos ao dizer (ligados à organização social) e internos a ele, ligados a quem tem o controle da fala (princípio de ordenação), a quem valora a qualidade do dito (princípio de classificação) e de distribuição do discurso (o comentário, o autor e a disciplina). Ou seja: podemos concluir que, na perspectiva foucaultiana, o próprio sucesso do simbólico leva ao fracasso da inovação.
Aprofundemos. Para Foucault, a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. (p.36). Longe de estar feliz com os supostos recursos infinitos para a criação dos discursos, o contemporâneo de Lacan destacava, ao contrário, sua função restritiva e coercitiva, função esta que, para o autor, se exercia por meio de um sistema anônimo – de caráter simbólico – não necessariamente ligado de forma imaginária a um nome de autor.
Em outras palavras, Foucault, que também reconhecia a estagnação na cena intelectual francesa, estava longe de querer solucioná-la por meio do simbólico. Denunciava que ela era fruto da univocidade no domínio de objetos, do consenso no conjunto de métodos, da adoção de um corpus de proposições consideradas verdadeiras, da submissão a um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos, em suma, da transformação de uma práxis qualquer em uma disciplina.
Como temos impedido que a psicanálise se torne uma disciplina? Sistemática e deliberadamente fazendo erodir o que a caracteriza, introduzindo invenções em cada um dos itens apresentados por Foucault:
Proposições verdadeiras e definições: conceitos e definições comumente veiculadas em cursos de psicanálise foram colocadas em questão no curso “enfim, A PSICANÁLISE NO DIVÃ!”. Nele, fizemos que chavões passassem pelo filtro da globalização e pelo duro crivo de casos clínicos discutidos, em tempo real, com colegas de todas as regiões do país.
Métodos, técnicas e instrumentos: não recuamos nem em filmar sessões autorizadas, nem em mensurar os efeitos clínicos da psicanálise com critérios cientificamente validados e, muito menos, em discutir o conjunto da obra com as comunidades psicanalíticas e científicas internacional.
Objetos e jogos de regras: introduzimos, com maior ou menor ênfase, a clínica do real em campos de atuação nos quais, tradicionalmente, a psicanálise não atua, tais como as identidades organizacionais, a assessoria de governos de países europeus para a implantação de políticas públicas linguísticas etc.
Repetindo: Como temos impedido que a psicanálise se torne uma disciplina normativa? Trabalhando, o máximo possível, no real, onde, dada a ausência de um sistema de regras e de hierarquias, tudo é café com leite, e, portando, não pode haver fracasso!
No dia a dia, o entusiasmo ao retomar o legado de Lacan, fazendo-o passar pelo filtro da globalização é tamanho que ele nos leva de arrastão. Assim, a cada vez que o tal fracasso banca o impertinente e se mete onde não foi chamado, fazemos valer a seguinte máxima de Forbes (2012), que orienta nossas clínicas: O impossível não se trata por aumento de potência, mas, sim, por invenção.
Nós levamos a sério este negócio de sermos um Instituto da Psicanálise Lacaniana. Não estamos interessados em ganharmos nenhuma espécie de concurso de sucesso. Então, quando alguém se perde e descamba para queixas ou lamentações, tem sempre alguém para lhe tratar com uma boa citação: Voltando à vaca-fria, a tarefa é a psicanálise. O ato é aquilo mediante o qual o psicanalista se compromete a responder por ela. (LACAN, 1967: 346).
Concluindo, há muito, nossas armas foram depostas. Não combatemos a sociedade e nem colecionamos inimigos. Fazemos laços. Potencializamos ressonâncias. Aumentamos a transferência com a psicanálise na justa medida em que inventamos soluções para os desafios da civilização ao surgirem. Quando Lacan pergunta quem, não respondemos com palavras, empenhamos a pele.

REFERÊNCIAS

FORBES, Jorge. (2012). Enfim, A PSICANÁLISE NO DIVÃ!
FOUCAULT, Michel (1970). A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
LACAN, Jacques (1967). A psicanálise. Razão de um Fracasso. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Pp. 341-349.
_____________ (1976). Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Pp. 560-566.