O arrimo do pai 23/01/2014

Por Liége Lise

O pai, fisgado pela culpa de ter transmitido a distrofia ao filho, pactuava com a doença, mantendo-o dependente e infantilizado 

Juan, 50 anos, subiu a rampa de acesso do Centro de Estudos do Genoma Humano fazendo de bengala seu filho de 13 anos. A carga genética da distrofia que transmitiu ao primogênito, também se presentificou como carga real, na necessidade de suporte e amparo que demanda ao menino.

Entrou na sala para a primeira entrevista com Dr. Jorge Forbes e Dra. Mayana Zatz apresentando os sinais avançados da Distrofia Muscular Fácio-escápulo-umeral: andar cambaleante, peito projetado para frente, escápulas aladas, flacidez facial e dificuldade em se sentar. Porém, negou-se ao uso de recursos mais eficientes e elegantes como a bengala, o andador e a cadeira de rodas. Num apelo sedutor, via doença, solicitou o olhar e ajuda do outro.

Juan foi indicado para o tratamento psicanalítico pelo fisioterapeuta do Genoma, pois, na avaliação do profissional, o paciente estava deprimido. Dos seus três filhos homens, o mais velho apresenta sintomas da doença genética.

Jorge Forbes, já nos primeiros minutos da entrevista, na tentativa de emprestar consequência, perguntou:

– Você pensa em usar cadeira de rodas?

– Acho que sim, mais pra frente, estou evitando.

– Por que essa recusa?

– Não quero ficar dependente de ninguém!

– E até quando você vai fazer seu filho de bengala?

Juan negou os limites decorrentes da doença. Dirigia sem ter condições físicas e sem carro adaptado. Contou que se envolveu em dois acidentes. Como negou-se ao uso de bengala e de andador, fazia do outro o arrimo, desde o filho até o estranho que passava na rua. No trabalho, servia-se da condescendência dos colegas que faziam grande parte do trabalho por ele. Colocava-se numa posição de ser ajudado, despertando pena e compaixão.

A histeria não é exclusividade do feminino. Na época dos estudos de Freud com Charcot na França, a histeria se apresentava com frequência nos sintomas dos pacientes masculinos. Os sintomas pós-traumáticos de guerra e as sequelas em decorrência de acidentes se configuravam como os principais fatores desencadeantes nos casos de histeria masculina.

Neste caso, o diagnóstico de histeria masculina ficou evidenciado a partir dos seguintes aspectos: a “bela indiferença”, na negação da realidade frente às limitações impostas pela doença; o dar-se a ver exibicionista, usando o corpo como objeto de apelo ao outro; a estratégia de sedução, demandando amor e reconhecimento no sofrimento; o uso que fazia da doença para consagrar-se como herói; o titubeio e hesitação recorrentes diante das tomadas de decisão e os acessos de cólera frente às contrariedades que tinha com o filho adolescente.

Responsabilizá-lo frente ao ato de dirigir o carro e deslocá-lo da queixa, implicando-o nas suas escolhas sem a necessidade de incluir o outro para lhe dar as garantias, foi a direção do tratamento adotada.

No início da análise, Juan trouxe o incômodo causado pela pergunta de Forbes, feita na primeira entrevista.

– O que o Dr. Jorge falou de fazer meu filho de bengala, me fez pensar… Eu digo para o meu filho, que vai dar tudo certo, que ele não vai ter a doença, que ele fique tranquilo.

– É, e como você pode afirmar uma coisa dessas? Perguntei.

– Pior eu ficar dizendo que ele vai ter, se a gente nem sabe…

– Então diga que você não sabe!

Na sessão seguinte, Juan chegou de bengala. Contou que teve dois episódios de angústia, teve insônia e que se sentiu estranho. Ao final da sessão, disse que andou se perguntando se o que sentiu não estaria relacionado com as coisas que vinha evitando encarar há tanto tempo, as quais estava falando no tratamento. Contou de um dos seus acidentes de carro. Disse que tomava muito cuidado, que era cauteloso e dirigia devagar.

– Esse acidente não foi culpa minha, nem sei direito como foi, um carro bateu atrás de mim.

– Me diz o número da placa e marca do seu carro, porque eu quero é distância de ti! Se você provocar um acidente e só você se ferrar, tudo bem. O duro é ferrar com a vida do outro que não tem nada a ver com isso.

Busquei, com intervenções contundentes, retirá-lo de uma posição acomodada e inconsequente diante do ato de dirigir e da maneira irresponsável com que ele se colocava diante do outro.

Após oito meses de tratamento, Juan optou por aposentar-se da empresa, deu abertura ao processo junto ao INSS e encaminhou os papéis para a compra do carro adaptado. A relação com o filho mais velho se revelou um vínculo simbiótico em que o menino cumpria uma função de parceria na doença. Fisgado pela culpa de ter transmitido geneticamente a doença, tentava repará-lo, mantendo-o dependente e infantilizado. Irresponsabilizava o menino frente aos compromissos escolares e aos comportamentos delinquentes que vinha apresentando.

Quando da entrevista de retorno, ao contar acerca dos impasses vividos com o filho, foi dada a possibilidade de trazê-lo para tratamento. Conforme pontuou Jorge Forbes: “Se ele fizer um tratamento a coisa fica mais tranquila para ele e para você. E também te libera, às vezes você pode estar criando uma mistura na forma como você reage e da forma como ele reage”.

Possibilitar que o filho fale em nome próprio, saia da sombra do pai, construa seu sintoma e encontre soluções singulares para seus conflitos é o que uma análise pode valer a esse menino. Mas essa já é outra história. 

Liége Lise é psicanalista. Membro do IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP.