Por Lélia Reis
Hoje, a formação do analista passa por aprender a fazer marcas perenes no corpo de quem sofre
Em fevereiro de 2013, o tatuador romeno Rouslan Toumaniantz tatuou seu nome, com mais ou menos doze centímetros, no rosto da namorada Lesya Toumaniantz, que conhecia há menos de 24 horas. É uma das manifestações da necessidade atual de demarcar o corpo com inscrições concretas. No jargão da psicanálise, diz-se que, na ausência ou recusa da castração, a pessoa parte para o ato. Eis o contrassenso, o imperativo do gozo vislumbrado na ação dos namorados não media o prazer: ele transborda o desprazer. Ou seja: como Lesya não encontrou um modo mais sutil de declarar o seu amor, se deixou tatuar, pagou com o próprio corpo, desfigurando a face.
Que paralelo podemos fazer entre este pacto pouco convencional aos olhos do status quo e a ação do analista que trata o homem do século 21? Freud já afirmava que, para operar a clínica, o analista precisa de um bisturi. Logo, estão pressupostos o manejo da técnica e a habilidade de quem o opera, mas, fundamentalmente, uma ação sobre um órgão do corpo. Para trabalhar, há que se ter contorno, há que se delimitar o local da cirurgia. Não há, então, como então operar uma clínica cirúrgica sem a resposta à pergunta “o que e onde dói”?
Aqui começam as complicações. Muitas vezes, o sujeito pós-moderno não sente a própria dor. É um anestesiado. Tente a rechaçar o gume do bisturi em favor do laser, digital, imaginário. É um gume que não se vê, mas que se sente. Se mal operado, cega, mutila, anula. Pode ser fatal. Por este motivo, talvez, o analista deva suportar o lugar do bom tatuador, aquele que cobra pelo que inscreve, tem um estilo próprio e se recusa a tatuar qualquer imagem, em qualquer lugar do corpo.
Se por um lado o bom tatuador não escolhe a imagem que vai desenhar no corpo do outro, por outro, ele não deixa que seu cliente seja escolhido por uma imagem que não lhe convém. Ele certifica-se de que o que está sendo tatuado tem relação com o corpo que recebe a marca. Certifica-se, também, de que a imagem seja plural o suficiente para que, quando o fogo do instante presente tiver passado, a pessoa possa encontrar outras significações, quem sabe produzir inovações em quadros pintados por ele mesmo, e não apenas através de um espelho segurado por alguém.
Espera-se que, então, o tatuado possa reconhecer a condição de sua imagem integrada ao desenho inscrito, uma invenção. Neste momento, caso queira subtraí-la, possa entender que não é o caso de apagar as marcas do passado – nenhum bisturi a laser é capaz de fazer isso – mas sim, de dar novas intepretações àquelas que têm. Posto isso, no campo da formação do psicanalista, para quem está começando uma clínica, sempre cabe a pergunta: E agora? (Es) tá tua a dor?
Lélia Reis é psicanalista. Doutora em Psicologia pela FFCLRP/USP, é pesquisadora do Laboratório de Psicossomática (FAMERP) e do grupo SexualidadeVida (CNPq/USP). Está cursando os “Bisturis da Clínica do Real” na Modalidade online.