O analista e o criador de galinhas 27/08/2015

Por Liége Lise

É a partir da dúvida, do conflito e da angústia que se faz análise. A intelectualidade que a psicanálise pede é aquela que a pessoa mostra quando se faz perguntas sobre si mesmo.

Riobaldo, 40 anos, sitiante, diagnosticado com Atrofia Espinhal Progressiva, foi entrevistado na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano-USP-SP, por Dr. Jorge Forbes e Dra. Mayana Zatz. Ao passar pela consulta de fisioterapia respiratória foi encaminhado com sintomas de Dispnéia, que não se justificavam a partir da doença.  Estariam a insônia e a ansiedade provocando a dor no peito e a falta de ar?

Apresentando sintomas tênues da Atrofia Espinhal Progressiva, Riobaldo, com tom muxoxo, cabeça baixa e braços cruzados, contava que andava “pensando negativo”, com preocupações a respeito do avanço da doença, estava se irritando com “coisas bobas” e, consequentemente, magoando seus familiares.

Diante de uma postura defensiva e de fechamento afetivo, o analista começa a dar outro ritmo à sessão.Como o baterista que vai despertando cada um dos instrumentos, foi dando uma marcação sincopada à entrevista. Um novo movimento passou a ser construído na sessão. Às frases inconclusas, o analista pedia finalização. Frente ao olhar e às pausas sideradas, relançava o diálogo. No alheamento silencioso, chamava a presença viva. Na morosidade, convidava para a pulsação na fala.

O corpo respondeu. Riobaldo descruzou os braços. Mostrou-se mais espontâneo e falante. Seu semblante foi descontraindo. O sorriso se esboçou e junto com ele uma nova cena analítica se construiu.

Contou que estava optando por ficar sozinho, o que lhe deixava inseguro, triste e com vontade de chorar. A reclusão se justificava pelo medo: se eu tiver no meio de pessoas, o que elas vão pensar de mim? Vão zoar se eu cair? Como vou levantar? Sinto-me fracassado…

O analista, sustentando uma presença atenta, serena e curiosa, a partir das falas econômicas de Riobaldo, fazia perguntas, as mais simples: como é um dia da sua vida? Quanto tempo levou na construção do viveiro para os pintinhos? Como você trata das galinhas? A que horas cuida da horta? Ouve radinho também de manhã? Aprendeu a tocar gaita sozinho? Quem são as pessoas que você vai encontrar no ponto de ônibus?

Ao se ouvir, a partir de suas respostas, revelou-se para Riobaldo o que da sua vida beirava à acomodação e à passividade. Ele foi se dando conta de como estava arquitetando de maneira reduzida a sua existência. Alimentava sua rotina com tédio, refreando suas atividades e seu horizonte de vida. Perdia-se em ideias de ruínas e fracasso, dedicando um tempo demasiado para ver a doença se instalar. Limitava sua participação, se desimplicando da vida da esposa e filhos. Nos pensamentos, pouco inspiradores, a melancolia era sua parceira fiel.

Ao final da entrevista, ao ser perguntado se gostaria de dizer mais alguma coisa, fazer alguma pergunta, Riobaldo disse: já estou satisfeito com as minhas perguntas. Imediatamente corrigiu: as suas perguntas me fizeram outras perguntas. Pude contar a minha história. A cartilha da “qualidade de vida”: acordar com o sol nascente, cultivar as próprias hortaliças e aves, viver sem a pressão do relógio, não se mostrou assertiva. Aparecia para ele como ela era uma forma de tampar seus medos e sua real condição. De fato, Riobaldo estava derrapando em uma depressão, sua irritabilidade era um indicador.

À medida que caía a tela encobridora, se descortinava para ele outras perspectivas, o que Jorge Forbes chama de “Vida Qualificada”, outra vida que refletisse suas paixões, onde houvesse lugar para as expressões da sua singularidade. Uma vida qualificada,  onde lhe cabia a responsabilidade de inventar uma satisfação pessoal e passá-la no mundo.

 Não foi preciso explicar a Riobaldo. Como ele disse: Já estou satisfeito com minhas perguntas, com minha história. As perguntas do analista lhe permitiram se formular as próprias e com isso outra possibilidade lhe sorria. É a partir da dúvida, do conflito e da angústia que se faz análise. A intelectualidade que a psicanálise pede é aquela que a pessoa mostra quando se faz perguntas sobre si mesmo. 

Liége Lise é psicanalista, membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA-SP.