O Amor, O Trágico, e O Além Do Trágico 09/07/2020

Letícia Genesini

“É possível que não haja nenhum instrumento
mais preparado para capturar a elusiva
qualidade da sua natureza do que um romance.
Use um ladrão para pegar um ladrão,
e um artista para um artista”

( Norman Mailer em “Marilyn”)

Se Hollywood nos faz pensar que eles inventaram o amor, Marilyn Monroe nos faz gostar do engano. A fábrica de encanto que foi a Hollywood clássica — um pouco charlatã, muito obsessiva, e por vezes até cruel — não desfaz, nem refuta a magia de que na sedução há algo que resiste a todo processo, a todo standard, a toda prova.

Por que afinal, ainda hoje, quase 60 anos após sua morte, ainda amamos Marilyn? Mesmo quem não assistiu a seus filmes, tem fabricada na memória a clara lembrança da atriz. E ainda assim, sua imagem nunca nos é completamente familiar. Quando a vemos em uma fotografia, a surpresa sempre está lá, e suspiramos: “olha, a Marilyn…”. É como se tivéssemos todos passado horas sem fim olhando para seu rosto nos perguntando de seus segredos, e mesmo sem resposta insistimos: “talvez se eu olhasse um pouco mais…”.

Se a brincadeira for listar atrizes mais belas, qualquer um pode lançar sua predileção — da nobre elegância de Grace Kelly, ao charme cool de Audrey Hepburn. Se formos comparar atributos, até Norma Jean teria inveja das pernas de Cyd Charisse e Ann Miller. Mas bastava um olhar ou um sorriso de Marilyn, que qualquer contraponto desvanecia: a sedução é soberana, ela joga com absolutos, não com verificações.

Reduzir Marilyn Monroe à questão do Sex Symbol é fazer pouco do que ela foi. Afinal, quantos sex symbols foram dirigidos por Sir Laurence Olivier? Em um papel, aliás, antes encenado no teatro pela grande Viven Leigh. Ou que tiveram professores de atuação brigando pelo afã de seu talento? Ou ainda que tiveram um dos maiores dramaturgos de sua época lhe escrevendo um roteiro (mesmo que fosse também seu marido)?

Podia não ser uma grande atriz para o palco, mas era uma grande atriz para a tela. Sabia se mover, conduzir o olhar, sugerir na voz, encantar quem a via. Parecia ter mais brilho do que a realidade, e mais carne do que um sonho. Bem disse Billy Wilder, diretor de “Quanto mais quente melhor”: “você sente como se pudesse estender a mão e tocá-la”.

Em sua vida foi tão elusiva quanto os mistérios de sua sedução. Todo fato sobre Marilyn encontra a mesma carga de verdade no seu oposto. Era ao mesmo tempo um deleite e uma chata, estúpida e sagaz, inocente e calculista. Era uma grande atriz, que não sabia atuar. Um talento natural, a todo momento premeditado. Por onde quer que tentemos não conseguimos capturá-la. Pode-se dizer tudo dela: Marilyn Monroe resiste a qualquer explicação.

Não cessam de tentar, porém. Traçam o destino de sua tragédia dizendo: a mulher mais amada do mundo, que nunca viveu um verdadeiro amor; a quem amaram sempre a imagem, e nunca a pessoa.

Mas se o amor deve passar do artifício e chegar à essência, nessa casa de espelhos, qual Marilyn seria a verdadeira? E o que seria nela de mais amável, a joia profunda por trás de todo amor? E ainda: quem seria esse homem sobre-humano capaz de carregar as chaves do mistério de sua sedução?

Não. Por melhor que sejam os homens, não acredito que haja herói valente ou príncipe encantado capaz de solucionar o enigma da sedução. De Marilyn ou de ninguém. A verdade nessa história, se ela estiver, é que podemos não possuir o mesmo magnetismo de nossa musa, mas como ela, carregamos o desconforto de toda pessoa amada. A dúvida: mas, afinal, por que me amam?

O que em mim é capaz de capturar o amor? Nos perguntamos com o medo de que se descoberto o engano, tirado o véu, o amor junto se vá. Mas nenhuma resposta afaga, pois quem ama também não sabe o porquê de seu amor. É só tentar dizê-lo para saber que a razão, sim, ela existe, mas não cabe na palavra.

 “Amo em ti mais do que tu”, é a resposta também enigmática que Lacan coloca em seu seminário 11, como quem diz: o bem do amor não está no centro, mas em outra parte. Não em uma suposta essência revelada na pessoa, mas no que nela possibilita o meu amor de amar; de ser “plataforma de desejo”, como coloca Jorge Forbes. Muito mais do que revelar a justa medida do encontro de almas, ou a verdade por trás da verdade, também o amor é seduzido.

É aí que está o desafio dos amantes e das musas. O desconforto do amor não está na sua falta, no buraco vazio que nos deixa quando em ausência, mas sim no mal-entendido da sua presença, a falta radical. Tarefa nada fácil, como diz Jorge Forbes: “A capacidade de amar é diretamente proporcional à possibilidade de suportar a surpresa do encontro inominável (…) Nada, nada simples, uma vez que abala diretamente os pilares da nossa identidade”.

De Marilyn sabemos apenas os mistérios, mas podemos pensar que seu drama não estava em não ser amada, ou ser mal-amada. Justamente o contrário: em ser a mulher mais amada do mundo, em suportar tamanho impossível de tanto amor.

Posto o impossível, o que nos resta? Um desfecho é a tragédia, o impossível como tal. A certeza de um fim do qual não podemos escapar. Afinal, não há como contra-argumentar com o impossível: noves fora, nada. Uma melhor saída, porém, — nos mostram os poetas, os fingidores, os artífices — é frente a uma certeza congelante, fazer variar a verdade. Se o amor não possui uma verdade a ser revelada, ele é uma história por fazer.

Esse é também o caminho da análise, que ao contar e recontar nossa vida, não nos dá a verdade original, como pensam alguns, mas a perda de nossas certezas trágicas. A possibilidade de contar histórias com nossa história.

“Talvez seja necessário que cada um de nós possa dar um passo além e abrir mão da segurança do trágico, da segurança do impossível como tal, para passar do impossível para a invenção”, coloca Jorge Forbes.


O amor para além do trágico não é um indizível que nos cala, mas um mistério que, justamente por não ter resposta, não cessamos de tentar dizer. É uma aposta na sedução, no engano, não como engodo, mas como narrativa. E se Marilyn nos mostra algo, é a beleza que pode ter um bom engano.

Trilha sonora do texto:
https://open.spotify.com/playlist/1E6QLN6bwJg0uS21bHdyug?si=ym0J2uIBRna11RXUWZtERQ

1. O bem do mar (Caymmi, cantado pela Gal)
2. João e Maria
https://youtu.be/bf1yRoOpL3k
3. Retrato em Branco e Preto
4. Saudosismo (Caetano Veloso)
5. Beatriz
6. Pecado Original
7. Esotérico (Gilberto Gil)
8. Dueto (Chico Buarque e Nara Leão)
https://www.youtube.com/watch?v=mEgy77G9D4Y