Por Elzira Yoko Uyeno
A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério (Elisabeth Bishop)
Sensivelmente dirigido por Bruno Barreto, “Flores Raras” conta a, entre nós, conhecida e, para a época, ousada relação entre a poeta americana Elisabeth Bishop e a arquiteta carioca Lota de Macedo Soares. Não menos sensíveis são as atuações de Miranda Otto e Glória Pires. Em tempos em que a homossexualidade é objeto de militância, a naturalidade diametralmente oposta com que o romance é narrado é a sua maior virtude: mostra-nos que o amor é a aporia da busca, embora inalcançável, incontrolável, de uma parte nossa para sempre perdida.
Essa noção lacaniana de amor nos remete ao mito do amor de Aristófanes, a quem se atribui a formulação da divisão do amor entre feminino e masculino. Narra esse mito que a nossa unidade primitiva foi posteriormente mutilada: havia três gêneros de seres humanos que eram duplos de si mesmos; havia o gênero masculino-masculino, o feminino-feminino e o masculino-feminino ou andrógino. Assim, sejam homens ou mulheres, aqueles que foram um corte do andrógino procuram o seu contrário, o que explica o amor heterossexual; aqueles que foram o corte do feminino ou do masculino estarão fadados a procurar se unirem a seu igual, o que explica o amor homossexual masculino e o feminino. Quando essas duas metades se encontram, tal como ocorreu com Bishop e Lota, sentem as mais extraordinárias sensações, intimidade e amor, a ponto de não quererem mais se separar: “fundirem-se” novamente num só é o que desejam.
A experiência analítica substitui essa representação da busca do outro como complemento pela busca não do complemento sexual, mas de outra coisa. Lacan deduz que essa outra coisa é, para o sujeito, a parte para sempre perdida de si mesmo. Isso porque, embora o mito de Aristófanes explicasse a nossa insaciável procura pela cara metade não explica porque, independentemente do sexo, não nos basta amarmos: desejamos o amor do outro por nós. É ao “Banquete” que Lacan nos remete para explicar o amor: quando lhe coube louvar Eros (filho de Poros que significa astúcia, recurso e de Penia que significa pobreza, carência), Sócrates falou que, sendo o Amor amor de algo, esse algo era certamente desejado pelo amor. Esse objeto do amor, contudo, só poderia ser desejado quando lhe faltasse e não quando o possuísse, uma vez que ninguém desejaria aquilo de que não precisaria mais. Na fala de Sócrates “Só se deseja aquilo de que se é carente”. Platão coloca seu apontamento crucial sobre o conceito de amor, segundo o qual, o que se ama é somente aquilo que não se tem. O objeto do amor, assim, sempre está ausente, mas sempre é solicitado. O amor, como a verdade, é algo que está sempre mais além: sempre que pensamos tê-la atingido, ela nos escapa entre os dedos. Eros teria a natureza da falta justamente por ser filho de Recurso e Pobreza explicara outro mito.
“A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério” escreveu Bishop – em impressionante precisão formal – em seu mais famoso poema, parecendo esperar que o poema pudesse preveni-la do sofrimento da perda. No amor, contudo, nada é previsível: a frágil poeta, alcoólatra, depressiva, mental e emocionalmente fronteiriça, saiu da relação, fortalecida, para uma carreira privilegiada de professora da Harvard. Para a segura, forte e já bem-sucedida arquiteta brasileira, a paixão foi-lhe uma experiência avassaladora da qual nunca mais se recuperou.
Elzira Yoko Uyeno, mestre e doutora em Linguística Aplicada (Unicamp), é docente e pesquisadora nas áreas de Análise do Discurso francesa e psicanálise do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da universidade de Taubeté-Unitau