Por Marcelo Veras
Cada vez mais os corpos se estranham diante da própria imagem refletida. É aí que a oferta de possibilidades tecnológicas para fazer do corpo que se tem o corpo que se quer fica cada vez maior e complexa
Desenvolvo um pouco mais um pequeno texto que me foi pedido pela jornalista Malu Fontes para o Ciclo Fronteiras do Pensamento. O tema geral proposto aos convidados saiu em um caderno com o título “Como viver juntos”. Escolhi escrever sobre a família e sobre a imagem de si. Minha questão gira em torno de saber se o complexo de Édipo acabou ou ainda é um artigo encontrado nas prateleiras. Com efeito, para o pior e o melhor o conceito tradicional de família foi para as “Cucuias”, uma região que parece ficar entre os rios Panamá e Marapi, conforme a lenda. Minha premissa é: como tudo mais que é tocado pela palavra, houve uma desnaturalização da família. Ou seja, esta não mais é configurada segundo as leis da natureza, somos uma natureza biológica afetada pelas palavras. A culpa é da linguagem, como seres falantes estamos sempre num “entre dois mundos”, o das palavras e o das coisas. É sempre o mesmo problema quando o simbólico se intromete nas coisas do real, ele torna tudo meio dúbio, instável, relativo, adjetivos completamente abominados pela maioria do establishment que se apoia em um discurso com pretensão cientificista. Diante de tanto relativismo, sobrava para os homens estabelecer símbolos fortes que pudessem atravessar as gerações, era a força da tradição. A família era um desses símbolos. Como as tradições perderam a sua força no mundo atual, este é, cada vez mais, carente de grandes verdades orientadoras. É natural, portanto, que nessas horas um apego à filiação sanguínea – sangue do meu sangue – emerja como um referência sólida do que é família na cabeça de alguns. Quem segue a série Game of Thrones recordará que um Lannister é sempre um Lannister. Esse apego à família como obra da natureza tem feito a fortuna da, nem tão recente assim, indústria da reprodução assistida. É sempre assim, basta a ciência médica fazer um formidável avanço científico e logo surge todo um aparato mercadológico buscando lucrar muito com isso por trás.
Parir virou algo muito diferente, nas últimas décadas, do que sempre foi nos cinco mil anos de civilização precedentes. Costumo dizer que, antes, fazer filho era gostoso, parir é que era doloroso. Hoje, com a maioria das mulheres começando a pensar em ter filhos apenas após os 30 anos, essa lógica foi um tanto invertida. Meu amigo Luiz Machado, grande obstetra baiano, me disse que as mulheres decidem ter filhos exatamente quando o corpo feminino começa a se despedir da idade de maior viabilidade dos óvulos. Elas saem de seus MBAs diretamente para o consultório do especialista em reprodução. Mas é isso mesmo e ponto. Não adianta ser nostálgico do lampião a gás. Assim como a família, a gravidez e o parto, embora ocorram no corpo biológico, passam por um processo de desnaturalização bem dentro do espírito prático dos tempos modernos.
Para muitas de minhas pacientes, nada é mais doloroso do que fazer o filho. Meses de hormônios, intervenções altamente tecnológicas, relações sexuais agendadas e cronometradas – o que obviamente é extremamente brochante – e por aí vai. Haja grana. Já o parto, se você não parir pelo SUS, será certamente um procedimento que deixou de ser cirúrgico para ser litúrgico. O parto em si virou uma cerimônia. Lembro que na maternidade em que nasceu minha neta esperávamos o surgimento da pequena diante de uma vitrine, sentados confortavelmente, tomando um chocolate em uma loja da Kopenhagen instalada dentro da maternidade. Hoje a cirurgia e os cuidados médicos são ofuscados pelo ritual das fotos, vídeos e lembrancinhas que começa desde a hora em que o pimpolho mete a cara ainda ensanguentada no mundo. É quando as coisas não dão tão certo, como no caso da minha neta, em que o mundo do parto disney foi substituído por dias angustiantes na UTI, que lembramos que ainda há dor no parto.
Contudo, valendo-nos do famoso chá caseiro “Freud explica”, constato que se a família consanguínea, batida no território edipiano papai, mamãe e filho, fosse tão inabalável, não seriam necessários tantos rituais na esfera privada e, tampouco, tantas manifestações em praça pública, bancadas religiosas e demais argumentos de autoridade simbólica para sua manutenção imutável e sagrada na esfera política. Com isso, quero dizer que a reinvenção da família, incubadora do modo como tecemos todas as nossas relações afetivas, não pode ser dissociada do modo como amamos e decidimos viver juntos hoje. A revolução virtual atingiu em cheio duas imagens que eram estruturantes das relações no século passado: a fotografia da família na estante e a própria imagem refletida no espelho do quarto. Pela televisão – eletrodoméstico com seus dias contados – ou pela internet, a casa moderna teve acesso à séries, novelas, sites de comunidades as mais diversas que ampliam radicalmente as possibilidades para a foto de família e para a imagem no espelho. Cada vez mais os corpos se estranham diante da própria imagem refletida. É aí que a oferta de possibilidades tecnológicas para fazer do corpo que se tem o corpo que se quer fica cada vez maior e complexa. Aqui também encontramos um formidável nicho mercadológico. A explosão de imagens do corpo ideal somente faz ampliar a distância entre o corpo próprio e o corpo idealizado da sociedade das imagens. Essa distorção tem um nome na psiquiatria clássica, dismorfofobia, ou seja, a impossibilidade de estar satisfeito com sua própria imagem. Deslocada da imagem estável familiar e da própria imagem de si, a subjetividade contemporânea mostra seus impasses diante das invenções necessárias para os novos laços sociais. Fundar uma família, ter filhos, ou simplesmente olhar-se no espelho tornaram-se tarefas muito mais complexas. As velhas tradições e ideais não servem mais tanto de modelo. No vácuo criado, é possível perceber duas respostas aparentemente distintas, mas nem tanto assim. Por um lado temos a tentativa de promover o retorno dessas tradições de modo anacrônico, fundamentalista ou paranoico. Por outro, a fetichização das tradições a serviço da indústria do consumo. Por sorte, o mundo atual contém igualmente o oposto de tudo isso. Nem que seja por modismo algumas mulheres voltaram a se acomodar em seus próprios corpos, o parto normal está de retorno. Recentemente, uma série de modelos se deixaram fotografar muito belas apesar das marcas da idade sobre seus corpos. Havia algo nessas fotos que muito me impressionou, mesmo quando o corpo envelhece é possível manter o olhar firme. Não precisa ser um olhar jovial, mas ser um olhar que mostra a verdade da vida. Lembro-me da última foto da belíssima Lauren Bacall pouco antes de morrer. Sem retoques, ela se deixou ver como estava aos oitenta e sete anos, sua atitude em nada parecia a de uma mulher subjugada pelo real da velhice. A firmeza dura de seu olhar era seu maior trunfo.

Voltando à família moderna, para além do retorno pesado das tradições, é possível fazer uma família simplesmente pela vontade de estar junto, ou seja, uma família que se inventa pelos laços – sempre precários – que une cada um. Uma família onde só percebemos que se trata de uma família quando recuamos um pouco e conseguimos ultrapassar a dissonância das peças avulsas para perceber que aí existe um conjunto, tal como um quadro de Vik Muniz.
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise