Novas barrigas 17/10/2013

Por Maralice Neves

Ao estabelecermos acordos para o nascimento de um ser humano, embaralhamos as noções de filiação, de pertencimento e de existência

A barriga solidária está dando o que falar motivada pelo caso de uma personagem da novela Amor à Vida, exibida pela Globo. Diz-se que a barriga solidária é aquela emprestada, normalmente, por alguém próximo dos pais, uma irmã, mãe, tia, ou outro parente. A prática é legal no Brasil e vem sendo regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) há pelo menos 20 anos.

Esse acordo não envolve dinheiro ou recompensas materiais. Alugar a barriga, no entanto, apesar de proibida no Brasil e em outros países, é aceita por lei em vários lugares, como a Índia, referência mundial dessa prática. O custo é baixo, os trâmites legais são facilitados e a infraestrutura de dormitórios supervisionados por médicos já está instituída. A justificativa é a de que as mulheres que alugam as suas barrigas proporcionam aos casais sem filhos a oportunidade de terem a desejada família e podem, com o dinheiro recebido, melhorar sua condição de vida.

Não muito antigamente, isto é, até o momento em que a biologia permitiu a fertilização in vitro e a gestação num útero emprestado ou alugado, o filho era exclusivamente fruto da relação sexual e meio de perpetuar, não somente a espécie, mas o legado do desejo de eternizar a vida ou de lhe dar sentido. A mãe engravidava, gestava, dava à luz e amamentava. Dava a ele, além de um enxoval, uma vestimenta cultural. A mãe desejava o filho que estava se desenvolvendo em seu ventre, escolhia seu nome, conferia-lhe um pai; dava-lhe enfim, um lugar na cultura. Podia-se dizer que esperar a gestação nutria o desejo dirigido ao filho.

A questão é: o que ocorre quando não se pode envolver mais o desejo em relação ao filho que se gesta, seja para doá-lo ou para vendê-lo? Ou quando os pais adotivos os compram, como se a um produto à venda numa fábrica de bebês? E os afetos do feto, do filho que nasce da barriga de aluguel? Jorge Forbes toca na questão em seu texto Somos todos adotados (Gente IstoÉ, 2013), ao afirmar que o ponto sensível ao animal humano é a filiação. Desconfiamos do nosso pertencimento familiar ao nos deparamos com o inevitável mal-entendido da nossa existência. E é justamente essa desconfiança estrutural, num mundo onde a orientação está cada vez mais desbussolada, que provoca a vontade de buscar uma certificação, uma tradição imaginária, afirma o autor.

Não é mais somente uma sensação de ser adotado, mas a sua presentificação, em práticas cada vez mais naturalizadas, que contribuem para aumentar o mal-estar. É comum a mãe que empresta a barriga desistir do trato quando nasce o bebê, gerando com isso, inúmeros problemas legais. Na Índia, a prática é mal vista socialmente. Uma mãe de aluguel paga um preço alto por separar seu corpo cultural do biológico: aluga a barriga com a intenção de dar melhor condição de vida à família, mas é separada desta, enquanto se interna num dormitório durante a gestação. Quando retorna, normalmente, tem que se mudar do local onde morava porque é hostilizada pelos vizinhos. Por outro lado, pelo que se observa nos inúmeros anúncios veiculados pela internet, é de assustar o número de mulheres brasileiras se oferecendo para alugar suas barrigas como se esse fosse um ato legal e corriqueiro. Estamos em mudança galopante dos modos de nascer, educar, constituir famílias e reconhecer filiações.

Maralice de Souza Neves é professora na Faculdade de Letras da UFMG e membro do corpo de formação do IPLA