Por Helainy Andrade
Dá para discordar e ao mesmo tempo amar, sem, com isso, ser incoerente?
“Por que somos tão infelizes?” O assunto, colocado em pauta por Sigmund Freud, é da ordem do dia, em todos os tempos. E ninguém escapa. Todos experimentamos o mal-estar na civilização. Freud, que sempre olhou uma coisa do direito e do avesso, mostrou-nos que a exigência de sermos civilizados nos protege da barbárie, sim. Porém, de outro lado, ela nos impede de ter acesso a muitas satisfações de que abdicamos para não sermos “animal”. Tanto melhor assim!
O lugar primeiro em que nos ensinam a ser civilizados é a família. Ah, família. Sempre dá o que falar. É melhor que cada um se atenha a falar só da sua, porque estamos aí pisando em solo sagrado. Sim, família pode até ser sagrada. Mas, o sagrado é o mesmo que perfeito? Especialmente em se tratando de “humanices”, talvez esse sinônimo não seja possível.
Chegamos tão prematuramente a esse mundo, que, se largados à própria sorte, somos incapazes de sobreviver. Devemos a vida a quem nos carregou nos braços, mas também a quem não nos deu guarida sempre e nos apresentou os limites dos quais nos valemos para nos salvar das exigências intermináveis de nosso “querer”. Assim, a família nos apresenta a civilização, em que uma cota de satisfação deve ser sacrificada pela preservação do outro e de si mesmo. Seguramente é por causa da dupla função, afeto e limite, que a família desperta tanta ambivalência nos seus.
É exatamente a respeito desse ponto que gostaria de repercutir Freud. O desapontamento vivido no “seio” familiar é mais frequente do que somos capazes de pensar em nossa idealização da família perfeita. Amamos e, ao mesmo tempo, odiamos as pessoas de nossa família. Se pudermos reconhecer que os dois sentimentos são legítimos e têm suas respectivas razões de existir, poderemos sentir as experiências de discordância com mais leveza e preservar, incólume, o amor. Dá para discordar e ao mesmo tempo amar, sem, com isso, ser incoerente. Não precisamos fazer uma coleção particular de decepções. Afinal, colecionamos edições raras, não as cotidianas.
Helainy Andrade é psicanalista em Varginha MG