Letícia Genesini
Paralelos entre “Umbigo do Sonho” (Resposta de Jacques Lacan a uma pergunta de Marcel Ritter em 26 de janeiro de 1975) e Análise Terminável e Interminável.
“Análise Terminável e Interminável” é um trabalho que investiga o fim da análise, conjugando na palavra “fim” seu duplo sentido. No último texto de sua carreira e de sua vida, Freud busca saber se no trabalho analítico o final e a finalidade formam um ponto de coincidência e, se sim, como chegar lá. Após dar ao leitor o caminho de seu percurso argumentativo, ele aponta que ao cabo de toda análise há um resto duro, uma “rocha básica”, que não cede aos esforços da interpretação, impassível a toda produção de sentido. Um ponto de não progressão.
(i)
Desde a pergunta de Marcel Ritter a Lacan, há um paralelo claro entre o diálogo de 1975 e o texto freudiano de 1937. Quando Ritter diz:
o ponto onde o sentido ou qualquer possibilidade de sentido termina
Ou
um novelo de pensamentos que não conseguimos desenrolar
Ou ainda
um ponto de falha na rede
Na resposta de Lacan, lemos:
algo que é a fronteira da análise
algo que não pode ser dito em nenhum caso, seja qual for a abordagem
Essa fronteira, Lacan aponta em suas frases, é um limite não da técnica, mas de uma impossibilidade:
algum ponto onde não há nada a fazer
Não há mais a ser extraído disso.
É aí que perdemos o fio. Não há maneira de puxar mais essa corda, a menos que a rompamos.
Vale lembrar que Freud não solucionou sua dúvida sobre qual dos dois limites ele se deparava. É Lacan que segue com a resposta:
na própria compreensão do Inconsciente, há a noção de que aquilo que o compõe, aquilo que o torna propriamente falando o Real, é um ponto de opacidade. É um ponto de intransponibilidade, é um ponto de impossibilidade.
(ii)
O umbigo do sonho e a Rocha Básica têm em comum, ainda, a imagem que formam, como uma presença, como algo que se coloca. Não é só uma falta pura, um buraco não coberto pelo sentido, um trabalho de exclusão. Não é algo que se dê por negativas, mas que se positiva, que se impõe, no qual a gente tropeça, se enoda, não se desenlaça.
(iii)
Aí entramos num terceiro paralelo.
Freud coloca que esse limite do trabalho analítico está ligado à diferença entre os sexos, ou melhor, na constatação dessa diferença, e às respostas que damos a isso — ele escreve: as posturas frente ao complexo de castração.
Como a biologia não nos mune das respostas sobre nosso próprio corpo, fica para nós o trabalho de nomearmos o enigma da sexuação. Frente à constatação dessa diferença, a menina percebe que há algo que ela não tem, logo, conclui: veio faltando; já o menino, constata que, apesar d’ele ter, há no mundo aqueles que perderam, logo, ele duvida: o que lhe protege da ameaça constante da perda tão possível quanto imaginável? O binômio da diferença, o ter e o não ter, é narrado pelas fantasias infantis, mas que de modo algum ali se encerram. O que segue, coloca Freud, são expressões diferentes de uma mesma postura: “a rejeição da feminilidade” — o homem por negar a castração, a mulher por achar que algo, um dia, virá a solucioná-la.
Nesse jogo de diferenças, em que o sentido é construído pelo ter e não ter, Lacan destaca o falo como um terceiro elemento. O que é esse terceiro é uma questão que requer mais atenção.
Em Freud, o falo ao mesmo tempo que aponta para a castração, está fora do jogo, como um operador, dizendo que ao final dessa série de anteposições haveria de fato um final, um ser humano não castrado. Lacan aponta para a questão de um terceiro fora dessa lógica. Se no sistema linguístico o sentido não é positivo, nasce da diferença — já que, como coloca Saussure, “na língua só existem diferenças” (p.139) —, em nenhum momento isso quer dizer que o que está fora da linguagem seja um ponto de comunhão, um ponto enfim de um saber puro, ou uma essência humanista. O que está fora é uma diferença de outra ordem, uma diferença radical, ímpar em absoluto, sem anteposição, portanto, sem possibilidade de produção de sentido. Com isso, Lacan nos mostra que a mulher entra na lógica do simbólico, é um homem como outro qualquer, é um ser castrado. Ao mesmo tempo, está fora da civilização, não tem um referencial.
Localizando no texto os indícios:
é justamente como formando imagens, ou seja, totalmente imaginário, que o corpo persiste.
escrever um x e um y que seriam o sexo masculino e o feminino propriamente falando, é algo que claramente não conseguimos fazer. Há uma relação com o Falo que introduz um terceiro irredutível.
Lacan, então, dá um endereçamento ao que Freud deixa em aberto:
uma impossibilidade de conhecer o que diz respeito ao sexo.
não há, em lugar algum, a possibilidade de se estabelecer, de alguma forma formulável, a relação entre os sexos.
Frente à diferença entre os sexos, a criança oferece uma fórmula imaginária, a civilização oferece uma fórmula de sentido — ou ter ou não ter. Freud mostra que agarramos a essa lógica como uma promessa, e se pergunta, então, como solucionar? Lacan está dizendo que não há solução enquanto fórmula, o nó não é desatável, temos que nos a ver com esse impossível.