Por Claudia Riolfi
Educação sexual vai muito além de aprender biologia e, mesmo, de ter contato com valores morais. Aí, o que importa é a posição do sujeito frente ao sexo
A suposta vítima e alegados agressores são alunos de uma tradicional escola particular paulistana. Segundo a grande mídia, que não deu maiores detalhes a respeito da instituição, a menina tem 13 anos e os meninos, em número de três, 14. No fim de abril, o quarteto protagonizou um episódio que vem sendo nomeado como “assédio sexual”.
Resumidamente: fingindo ser um amigo, os meninos lhe mandaram um SMS falso e marcam um encontro. Ela foi. Eles a agarraram. Ela fugiu e voltou à escola, queixando-se do assédio. Na escola, o assunto ganhou proporções calamitosas e foi parar nas ruas. Os jornais publicaram e educadores foram consultados. Falou-se em violência contra a mulher. Rapidamente, hordas aderiram à queixa da menina e passaram a clamar por punições mais rigorosas aos frangotes. É tão simples assim? Não me parece.
A coincidência desta cena e de outra, ocorrida em 1901 e narrada por Freud, chega a ser lamentável. Dora era uma mocinha virgem de 14 anos. Foi deixada sem proteção com um amigo da família que, aproveitando-se da ocasião, lhe tascou um beijão na boca, contra sua vontade. Ela conseguiu se livrar dele e fez um grande escândalo, alegando asco. Adoeceu e foi levada para a análise. Mais tarde, Freud percebeu que todos os personagens da narrativa, incluindo a moça, estavam implicados na bagunça.
O psicanalista, inclusive, escandalizou o espírito da época afirmando que: a) qualquer pessoa desta idade que tivesse oportunidade de fruir de experiências sexuais e não as aproveitasse estaria sofrendo de neurose histérica; b) toda mocinha desta faixa etária deveria estar apta a lidar com situações deste tipo sem causar maiores comoções na sociedade onde vive. Mais de cem anos depois, nós não aprendemos a ensinar nem uma nem outra coisa para as meninas. Por quê? O que deixamos de fazer? O que não percebemos?
O ocorrido levanta algumas perguntas embaraçosas, demandando olhar mais cuidadoso. Comecemos pela instituição: não caberia à escola pontuar que uma mocinha de treze anos já tem condições de ser discreta? Por que ela não parece ter sido eficaz em ensinar seus alunos que o mundo não é idêntico à versão idílica de seus sonhos? Sério que, após versões aumentadas do acontecido terem ganhado os corredores, a orientadora educacional decidiu dar consistência a isto percorrendo as turmas do quinto ao nono ano contando esta historinha sórdida para 500 alunos? Na perspectiva da clínica do real, mais valeria guardar silêncio a respeito do que não tem sentido.
Prossigamos pelos meninos: por que três garotos em idade escolar não encontram coisa melhor para fazer ao fim da tarde além de cercar e agarrar uma menina contra a vontade? Se o que lhes movia era o desejo de um contato sexual, precisavam fazer isso em três? Por que não conseguiram evitar que a menina se desvencilhasse e fosse até a escola fazer a denúncia? Por que afinaram no meio da brincadeira de mau gosto? Não lhes passou pela cabeça arranjar cada um uma namorada? Ou, mesmo, se a motivação era a companhia um do outro, um namorado? Será que alguém lhes explicou que é gay fazer ações sexuais junto com pessoas do mesmo sexo? Como vão entender que a escola pensa que sua ação foi grave se sua reação foi afofada com tanta falação? De novo, na perspectiva da clínica do real, mais valeria pensar em modos de dar consequência ao seu desagrado do que ficar explicando o inexplicável.
Concluamos pela menina: por que uma garota desta idade não diferencia uma mensagem enviada por um amigo e por golpistas? Caso o SMS fosse obra de um pedófilo adulto, o que a teria salvo dos efeitos do logro? Por que não aprendeu ainda que prudência e canja de galinha não costumam fazer mal a ninguém? Alguém lhe perguntou o que ela queria com o amigo quando foi à praça? Do ponto de vista da clínica do real, o fato da moça ter sido feita de objeto é menos importante do que a sua posição de falta de malícia, cujo resultado é levá-la a agir como se fosse um.
Inacreditável a quantidade de pessoas inocentes em torno desta história. Todo mundo querendo pensar que os outros são (ou deveriam ser) anjos. Todo mundo querendo negar que temos desejos mais ou menos excêntricos. Todo mundo tirando o corpo fora na hora de ensinar as meninas como despir a infância para vestir os véus de uma mulher. Todo mundo falando, falando, falando, para não dizer nada de consequente. Vai sobrar torpedo pra tudo quanto é lado.
Claudia Riolfi é psicanalista e cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA.