Por Claudia Riolfi
Com um pouco de audácia e de criatividade, sempre é possível alterar o estado de nossa relação com o conhecimento, mesmo quando o passado parece nos assombrar
Levou o “até que a morte vos separe” a sério. Então, eis que ela, viúva já há mais de ano, cedeu aos encantos do vizinho e resolveu dar nova chance ao coração. Tudo bem? Não. Estamos em Angola e, antes que o garboso pretendente (aqui entre nós, no Brasil seria qualificado como “um Senhor Negão”, com tudo maiúsculo) possa aquecer suas noites frias, é preciso, ainda, sucesso no “Cabrar”.
O “Cabrar” funciona assim: quem quer se casar de novo precisa fazer com que sua família compre o animal que dá origem ao nome do ritual: uma cabra. Depois, obter autorização do “Soba”, autoridade nacional das tribos do povo angolano, responsável por julgar as causas ligadas às pequenas querelas locais e às grandes questões místicas. Em seguida deve, com as próprias mãos e na presença da comunidade, soltar a cabra na entrada do cemitério e esperar que ela siga o bom caminho.
O animalzinho precisa entrar no Campo Santo e, ainda por cima, encontrar o túmulo do falecido. Se ele consegue a façanha, interpreta-se que a viúva permaneceu pura até aquela data (pura, aqui, significa, sem contatos sexuais fortuitos). Se a cabra não encontrar o túmulo correto, as pessoas pensam que a mulher não soube guardar o devido decoro e, consequentemente, não está apta para o novo casamento.
Tradicionalmente, o caso é ainda mais grave: quem se casar com viúva que não conseguiu “Cabrar” está assinando uma sentença de morte. É de senso comum que, desonrado, o espírito do falecido matará o incauto pretendente. Por esse motivo, em diversas comunidades, as viúvas que não “Cabraram” permanecem sozinhas por longos anos, pois ninguém teria a ideia absurda de se expor aos insondáveis perigos dos reinos dos mortos.
À viúva que não “Cabrou” resta implorar ao “Soba” que lhe deixe tentar “Cabrar” outra vez. Em poucas palavras: seu destino amoroso está nas mãos de uma cabra. Ela está nas mãos do Outro. Será? Será que, em Angola, esse Outro consistente ainda existe?
No intervalo de minha pesquisa oficial, realizada em Angola durante o mês de julho, tomei em minhas mãos a tarefa de entrevistar alguns Sobas (cujos nomes serão omitidos, por razões evidentes), bem como pessoas com viúvas na família, para verificar se, na prática, é assim mesmo que acontece. Sim e não.
A história mais divertida ficou por conta de um pretendente que, horrorizado com a perspectiva de esperar ainda mais, fez um acordo com um vendedor de cabras e conseguiu que esse, durante a madrugada, treinasse o animalzinho para ir, sem escalas, ao túmulo do falecido. Depois, bastou que o vendedor oferecesse um desconto no ruminante treinado e pronto: o noivo tomou seu futuro em suas próprias mãos. Por via das dúvidas, tinha, mais tarde, se encarregado de jogar vinho da melhor qualidade no túmulo do morto, para que ele não se aborrecesse. Perguntei ao Soba se ele achava esse comportamento imoral. Ele me respondeu sem esboçar dúvida: isso não tem problema nenhum. Se o defunto tivesse se oposto, o treinador da cabra teria morrido também.
Para quem está se perguntando o que tem o “Cabrar” a ver com o início das aulas, um lembrete: mesmo para quem pensa ser necessário esperar algum tipo de autorização mística para alterar sua relação com o conhecimento, sempre é possível dar uma força para a natureza. Assim, agora que o segundo semestre está começando, pais, alunos, professores e demais profissionais da educação não precisam ficar “cabreiros”. Precisamos é nos haver com aqueles buracos negros que, na formação de cada um, não ficaram bem enterrados.
Claudia Riolfi é psicanalista, cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA