Não veio de chocadeira 21/03/2013

Por Claudia Riolfi

A psicanálise não assina embaixo de uma leitura que torna Freud cúmplice de pais irresponsáveis e filhos inconsequentes

O condomínio, de luxo. As regras e regulamentos, claras e bem redigidas. A comunicação interna, bem-feita. Todo mundo sabia: quando um menor ia utilizar o salão de festas, era imperativo que os seus pais ou responsáveis estivessem presentes. Isso não impediu que a senhora, no início da festa oferecida por seu filho, pegasse o seu carro e fosse ao shopping. Altamente alcoolizados, após vinte minutos os jovens quebraram tudo: a churrasqueira, as mesas, as louças, a tampa dos fogões, as portas dos banheiros…
O síndico chamou a polícia. Os guardas, a mãe do adolescente anfitrião. Para surpresa dos policiais e dos condôminos, ela reagiu aos berros: Quem se dava ao direito de interromper seu sagrado direito de descanso no sábado? E quem era tão ignorante a ponto de não entender que os jovens tinham direito à liberdade de opção? Nunca tinham lido Freud? Ela não entendia, de forma alguma, a mobilização da polícia. Se eles conseguiram quebrar tudo, era porque o material do condomínio não era de tão boa qualidade assim. Ela considerava, inclusive, processar o síndico por danos morais. Estava muito preocupada com o trauma de sua ação sobre os adolescentes. Em nome de Freud?!
Teria Freud concordado com esta leitura? Não. Dois argumentos. O primeiro é a noção de “trauma” em Freud. Pensado em termos metapsicológicos, este conceito está referido a uma quantia de libido que se move no aparelho psíquico. O trauma seria, então, gerado por uma experiência que gera um acréscimo de estímulos muito grande em curto espaço de tempo. Este súbito acréscimo de energia torna sua elaboração pelo aparelho psíquico inviável. Neste sentido, por que esta mãe não se dá conta de que “traumática” é experiência de quebrar tudo em uma festa? Pensemos nos ruídos, no esforço físico, na excitação dos cacos voando para todos os lados. Alguém duvida do excesso de energia aí envolvido?
O segundo é a noção de “narcisismo” em Freud. Ao comentar a atitude de pais afetuosos para com os filhos, ele afirmou: “temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram”. Freud não desvinculava narcisismo e amor, mas os articulava em uma relação de interdependência. Para poder cuidar afetuosamente de seus filhos, portanto, uma pessoa precisa, na opinião de Freud, deixar, ao menos um pouco, de concentrar seu narcisismo em seu “eu”. Não pode largar o filho no meio da festa e fugir para o shopping.
Pobres filhos de chocadeira. Não estão mais felizes do que os adolescentes que foram proibidos de quebrar os condomínios onde moram. Deixados à própria sorte, são agitados, feito fantoches, ao sabor de suas inclinações de ocasião. Não conseguem dar endereçamento às próprias pulsões e, deste modo, sentem-se perdidos e vazios.
Posto isso, esta Newsletter chama atenção dos colegas psicanalistas para não se furtarem a sua responsabilidade com relação à transmissão da psicanálise. Se as pessoas estão se apoiando em nossa área para justificar suas ações inconsequentes, não adianta virar para o lado e dizer que não temos nada a ver com isso. Afinal, vamos assumir o peso de nossa filiação ou, por acaso,pensaremos em nós mesmos como psicanalistas de chocadeira?