Por Claudia Riolfi
A passeata – versão brasileira do World Naked Bike Ride (WNBR) – é uma espécie de instalação em movimento
O que é um bom texto argumentativo? Como montar uma argumentação convincente para o interlocutor? Estas questões são repetidas desde os gregos. Durante muito tempo, julgávamos ter as respostas: bastava ter boa cultura geral, seleção dos argumentos, organização, clareza na sua exposição e boa expressividade linguística que produziríamos textos orais e escritos arrebatadores.
Hoje, nem sempre a coisa funciona assim. Quando começamos a falar muito, no afã de apresentar bons argumentos, o interlocutor tende a desligar, afirmando que não está disposto a escutar sermão. Se nos demoramos trabalhando nos recursos estilísticos, logo tem alguém para nos chamar de obsessivos. Pouca gente tem paciência com boa oratória.
Frente a isso, nos viramos como podemos. Mais comumente, quando a matéria é importante, preferimos escrever textos curtos, concentrados, de rápida leitura. Será que essa manobra resolve a eficácia argumentativa? Nem sempre. Para quem ainda gosta da racionalidade mais consistente, passamos por superficiais, para quem já a dispensou, por supérfluos.
Mais valeria desistir de escrever? Para que serve a escrita? Aí reside o “X” da questão: hoje, ela serve como um modo para tocar um corpo. Exemplifiquemos. Para os ciclistas que, dia 15, sábado à noite, atravessaram a Paulista, desceram a Nove de Julho, prosseguiram pela Faria Lima e fizeram a festa de quem os viu na Vila Madalena, a escrita se prestou para tornar o corpo próprio uma instância artística e política.
Cansados de serem assassinados ao pedalar, os ciclistas arranjaram um modo praticamente infalível de chamar atenção: passear de bicicleta vestindo apenas os seus capacetes (ou, no caso dos mais tímidos, peças íntimas) na hora e lugar onde muitos jovens se concentram para a balada.
A passeata – versão brasileira do World Naked Bike Ride (WNBR), movimento que ocorre em várias partes do mundo – é uma espécie de instalação em movimento. A intenção dos organizadores é mostrar como uma pessoa que anda de bicicleta em uma grande cidade se sente fragilizado e exposto no trânsito violento.
Não contentes em se fazer ver, aqueles que protestavam transformaram a sua pele em outdoor móvel. Literalmente, empenharam-na para tornar suas opiniões conhecidas. Quem atentou para os escritos presentes nos corpos dos ciclistas nus pôde ler frases tais como: “Mais respeito no trânsito”, “Mais amor, menos motor” e “Obsceno é o trânsito”.
Muito curtas, essas frases dificilmente poderiam ser classificadas como “texto argumentativo”. O conjunto, entretanto, foi bastante persuasivo. Tocou a quem viu os ciclistas. Mexeu com quem se colocou uma pergunta a respeito do que eles estavam fazendo.
Quando, no seu Seminário 23, Jacques Lacan afirmou que a psicanálise contemporânea estava caminhando para o “ressoar” como seu modo preferencial de funcionamento, estava antecipando a ação dos ciclistas. Propriamente dizendo, eles não falaram quase nada, mas deram seu recado. Para quem os viu, proporcionaram uma cena inesquecível. Que sua ação inspire a educadores e psicanalistas.
Claudia Riolfi é psicanalista e cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora Livre-docente da Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA