Por Claudia Riolfi
“Inovar” é um verbo que não admite imperativo. As inovações criativas só ocorrem no conforto das pessoas que amamos e no confronto com quem está fora deste laço
Quando ela entrou na minha sala na Universidade de São Paulo, assustou-se. Eu não estava lá e duas mestrandas ocupavam minha mesa de trabalho. “Você deve estar interessada na bolsa de iniciação científica.” Adivinharam. Então, enquanto eu não voltava, passaram, sem ter sido solicitadas, a explicar como se fazia um projeto de pesquisa. Tempos depois, a moça me contou que não sabia se ia embora ou se prestava atenção, afinal de contas, as desconhecidas eram no máximo, dois anos mais velhas do que ela.
Quando cheguei, uma das garotas me deu a ficha da recém-chegada, decretando em voz alta: “Ela é muito crua, professora. Vai dar trabalho. Acho melhor a gente arranjar alguém para mostrar o banco de dados para ela, porque senão não vai sair nada.” Pensei em contemporizar, mas, antes que tivesse tempo, um aluno me trouxe água e café, apenas por saber que, certamente, eu não teria tido tempo de ir até a copa. Outro passou para dar um beijo. Um terceiro veio pedir um livro emprestado. Como ninguém saiu, a novata se viu rodeada de cinco desconhecidos. Tivesse ido embora, estaria até hoje sem sua bolsa…
Onde estaria a noção de privacidade da Faculdade de Educação da USP? “Que gente esquisita”, a novata pensou, ao notar que uma discussão acalorada a respeito de um conceito havia começado. Alguém sentou no chão. Alguém, ainda, tirou uma banana da mochila. Ao que tudo indicava, teria de fazer suas perguntas na frente da plateia. Todos se interessaram. “Como assim, não tem ideia alguma? Se não tem ideia, por que veio aqui? O quê? Você nunca mexeu com rascunho? Então por que quer trabalhar com a gente? Por quê? Por quê?”
Ao tentar responder, a moça se embananou toda. As reações foram imediatas. Um pegou uma caneta, outro estendeu o papel. Resumindo: não tinha passado meia hora e a mocinha crua tinha em mãos um esboço de projeto em um nível que, sozinha, teria provavelmente levado mais de seis meses para conseguir redigir.
Esta cena aconteceu há vários anos. Sua protagonista, à época com 19 anos, está, hoje, no primeiro ano de seu doutorado. A colega que a recebeu, prestes a terminar sua tese. A galera da água, café e beijo se tornou professor em universidades públicas brasileiras. São produtivos. Publicam, viajam, têm convites nacionais e internacionais. Sempre que podem, se juntam no mesmo clima intrometido que marcou o primeiro encontro: no chão, na beira da fogueira, no mar, no meio da madrugada. Mal sabiam eles que seu modo de trabalhar – muito próximo, intenso, presente – é, hoje, vanguarda.
No começo de abril, o The New York Times Sunday Review publicou, em um artigo com o título Engineering Serendipity, que a Yahoo! iria mudar seu modo de trabalhar: proibiria os funcionários de trabalharem em suas casas. A notícia em si nos interessa menos do que os motivos que podem ser depreendidos do memorando enviado aos funcionários, em especial, os que seguem: 1) “As melhores decisões e insights ocorrem nas discussões de corredores e dos cafés, nos encontros com pessoas novas, nos improvisos em reuniões de pequenos grupos” – literal do memorando; e 2) Fazer o seu melhor sozinho não pode competir com vagabundear perto da máquina do cafezinho esperando que a inspiração – na forma de um colega – golpeie você.
Até parece brincadeira! Quando todo mundo espera que as empresas proíbam a vagabundagem, a Yahoo não só a estimula como justifica sua opção a partir de uma aposta bastante inusitada: na “capacidade de fazer descobertas importantes por acaso”, capacidade esta que, na língua inglesa, recebe o nome de serendipity. O Google está na mesma onda. No mesmo artigo, estava divulgado que seu novo prédio, na Califórnia, foi projetado para aumentar as chances de “colisões casuais” entre os colegas de trabalho. “Ninguém coloca inovações em sua agenda”, a empresa explicou.
Para inovar, precisamos de duas instâncias distintas, porém igualmente importantes. A primeira é o grupo coeso, de referência, que se importa com você e com quem você se importa. Nele, você pode falar suas abobrinhas, fonte da criação. Ali você se reconhece, pode se dar ao luxo do desnudamento e do confronto com o desconhecido.
A segunda é o recém-chegado, o elemento estranho. Surpreendente, ele mostra o que está difícil. Desarranja o narcisismo do grupo. Não deixa que ele se feche na comodidade do amor. Golpeia com suas perguntas toscas e se faz golpear com as respostas de tolerância zero.
Se quisermos criar, aprendamos a lição do Yahoo e do Google: não dá para confundir rigidez burocrática com disciplina intelectual. Esta última se relaciona, tão somente, ao esforço implacável de se manter fiel a uma lógica e não ao controle do tempo e do espaço.
Para sermos criativos e inovadores, não interessa procurar soluções, mas, sim, que elas nos achem.
Claudia Riolfi é psicanalista e cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA.