Teresa Genesini
Na aula de 25 de maio no Curso da TerraDois, Jorge Forbes me perguntou se eu era a favor da eutanásia. Respondi que sim. Em seguida me perguntou o que eu pensava sobre a posição de Luc Ferry em relação à eutanásia. Respondi que achava que ele não seria favorável, mas não consegui justificar minha resposta. Jorge então nos enviou o texto que Luc Ferry publicou recentemente em sua coluna semanal do jornal Le Figaro, com o título “Não à eutanásia” e me pediu que fizesse um breve comentário sobre esse artigo.
Primeiramente vou contextualizar a questão.
Luc Ferry é um dos filósofos mais importantes da atualidade, já foi ministro da Juventude, Educação Nacional e Pesquisa do governo francês e tem se dedicado a estudar os fenômenos da pós-modernidade. Dele, já estudamos aqui no Curso da TerraDois, “A revolução do amor”, “A revolução transumanista”, “Família, amo vocês”. Tem participado com Jorge Forbes em vários debates, como em 2018 na UNESCO sobre Inteligência Artificial e Subjetividade; no Café Filosófico da TV Cultura e no Fronteiras do Pensamento, sempre avançando sobre as mudanças na pós-modernidade. Ferry também dialoga com outro pensador da pós-modernidade – Laurent Alexandre – médico, criador de várias empresas, hoje à frente do DNAVision, líder europeu em genética e genômica e sobre as consequências do avanço da tecnologia na vida humana. De Alexandre, estudamos também “A morte da morte”, ou como a medicina biotecnológica vai transformar profundamente a humanidade”.
Lembro ainda o texto de Jorge Forbes ao anunciar TerraDois, em que “do nascimento à morte, passando por todas as etapas da vida: educar, estudar, amar, casar, trabalhar, procriar, profissionalizar, divertir, aposentar, tudo é radicalmente diferente”. E no 11º ponto, em que fala da morte, afirma: “Hoje podemos mais do que desejamos. Esse aspecto fica muito evidente na definição da hora da morte. O que era ‘morte natural’ passou a ser morte escolhida, uma vez que a tecnologia prolonga em muito a vida mecânica.” No caso da morte, diz ele, temos um cardápio a escolher. Porém, em muitos países, essas opções não estão ainda legalizadas. É o caso da eutanásia.
No Brasil a ortotanásia foi aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, procedimento em que o médico é autorizado a suspender ou limitar o tratamento, oferecendo cuidados paliativos em caso de pacientes sem esperança de cura. Holanda, Bélgica, Suíça e Uruguai são países em que a prática da eutanásia é legalizada.
Agora que a França está debatendo a questão da legalização desse procedimento, os intelectuais estão se manifestando. Ferry, em sua coluna semanal no jornal Le Figaro, se manifestou contra a eutanásia, dizendo que “apesar de todos os cuidados com que se pretende cercar uma lei que venha a legalizar a chamada eutanásia “ativa” – o suicídio assistido – permanecerão graves riscos”. E apresentou três argumentos que sustentam sua posição.
Primeiro argumento: “Todos sabem que a doença, e até a simples inserção em ambiente hospitalar são um fator notável de depressão, cujo primeiro sintoma é um aumento da indiferença pela própria vida: seria razoável, nessas condições, abrir o caminho para o suicídio assistido?”
Com esse argumento Ferry está dizendo que oferecer uma opção de morrer para quem está deprimido, com baixo investimento de libido, é direcionar sua escolha para a morte. Como se o doente não tivesse outra opção e mais ainda, que essa opção poderia funcionar como uma tentação. Ele acrescenta, ainda, que mais de 40% dos médicos de vários países já receberam pedidos para exercer a eutanásia e, embora não se saiba a resposta, a legalização do procedimento seria um incentivo maior para o consumo da eutanásia, que já tem uma demanda represada. Com isso, haveria um excesso de demanda.
Segundo argumento: Sobre os defensores da tese da “morte com dignidade”, Ferry contrapõe dizendo que o fato da pessoa envelhecer e ficar debilitada não tira sua dignidade. Finaliza esse argumento assim: “Pois bem, para dizer as coisas claramente, é essa convicção que considero indigna, a bem dizer repugnante. Acaso um ser humano pode perder sua dignidade? Sem dúvida, por sua culpa, se cometer infâmias, mas certamente não por ser velho ou doente.”
Nesse segundo argumento Ferry critica a tese da “morte com dignidade”. Para ele, dignidade não tem nada a ver com o fato de uma pessoa estar debilitada ou envelhecida. Ou seja, a questão da dignidade não seria um fator a ser considerado para justificar a aprovação da eutanásia. Vale lembrar que não é o doente que fala em dignidade, mas sim os defensores da eutanásia, que assim denominaram a causa. Ferry está debatendo com esse grupo, que construiu um argumento enviesado, centrando na questão da dignidade.
Terceiro argumento: Ferry questiona a relação paciente – médico, o primeiro como demandante e o segundo como caridoso, dizendo: “eu não acredito nem em um nem em outro dos dois membros deste cenário ideal. Pelo contrário, parece-me evidente que a noção de “assistência” indica suficientemente que não estamos no contexto do exercício de uma liberdade plena e irrestrita, de uma perfeita autonomia.” E coloca a questão ética dessa resposta à demanda, dizendo: “Quem pode dizer com absoluta certeza que a um grito de socorro a resposta pela morte seja a melhor? Que me permitam, no mínimo, duvidar. Aliás, basta pensar naqueles que amamos para estremecer frente à ideia de que possam, em um dia de desespero, cair nas mãos daqueles terríveis doutores da “saída” rápida e indolor.”
Nesse terceiro argumento, Ferry se coloca na ética da Psicanálise, em que o analista não deve responder imediatamente, mas interpretar a demanda do paciente. Não é uma decisão simples, implica posicionamentos éticos. Ele cita uma lei já aprovada na França, a lei Leonetti, similar à ortotanásia, que garante que a vida de um doente terminal não pode ser mantida a qualquer custo. Segundo ele, isso já basta. E radicaliza a posição dos médicos, como se todos fossem pessoas sem ética, que apenas atendem à demanda de um mercado, como facilitadores de um processo. Ferry finaliza seu argumento dando um alerta inflamado a todos aqueles que querem abreviar a vida por acharem que serão um fardo para seus familiares. Acho que é uma inversão, pois os doentes não pedem a eutanásia por se acharem um fardo para seus familiares, mas por serem um fardo para si mesmos.
Contrapondo Ferry, lembro que Freud solicitou a seu médico que lhe ajudasse a abreviar seu sofrimento – “agora é apenas uma tortura e não faz mais sentido”, disse ele a seu médico, Dr. Schur, que consentiu. Freud segurou a mão do médico e agradeceu. O homem que criou uma obra que mudou o mundo não teria direito a morrer com dignidade? Pode-se dizer que Dr. Schur era um “daqueles terríveis doutores da ‘saída’ rápida e indolor”, a que Ferry se refere no seu terceiro argumento?
Luc Ferry, como filósofo brilhante, soube defender bem sua posição com argumentos claros e lógicos. Porém, como um humanista de direita, esclarecido e progressista, que se pronunciou a favor de casais homossexuais, a favor do aborto, e por todo seu histórico intelectual, era de se esperar que fosse favorável à eutanásia. Mas, no início de seu artigo, ao anunciar que com a aprovação da lei, apesar dos cuidados, ainda permaneceriam graves riscos, ele já nos mostra um excesso de precaução. Ferry demonstra nos seus argumentos uma posição conservadora, põe o pé no breque e quer controlar o excesso. Sabemos, pela clínica do real, que o excesso é uma das faces da pós-modernidade e que temos que conviver com ele.
Respeito sua posição e seus argumentos bem colocados. Porém, acho que não podemos tolher alguém da sua liberdade de escolha e a lei permite isso. Cada um é responsável por suas escolhas.
Para finalizar, pergunto: quem pode dizer com absoluta certeza de que quando um ente querido, um pai ou um filho estiverem em grande sofrimento, numa situação terminal, não vai pedir ao médico para abreviar o sofrimento do doente? Quem de nós, num estado sem chance de sobrevivência, não vai solicitar uma dose de morfina para aliviar a dor, abreviar o sofrimento e pedir ao médico ajuda para morrer?
A cada um, sua resposta.
Teresa Genesini é psicanalista e diretora do Instituto da Psicanálise Lacaniana.