Na sola do tênis 22/05/2014

Por Dorothee Rüdiger

Estamos, hoje, vivendo no Brasil, o que o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben chama de “estado de exceção global” ou “anomia”.

Em tempos difíceis, é importante possuir um bom par de sapatos, porque é preciso caminhar. Os paulistanos que o digam. Já se tornaram verdadeiros campeões no exercício de percorrer longas distâncias. Às vezes fazem isso por puro prazer, quando participam, por exemplo, no dia de São Silvestre, da corrida em homenagem a esse santo. No entanto, nos últimos dias, gastar solados impõe-se aos cidadãos dessa cidade como uma necessidade. É preciso encarar uma situação bem menos festiva. A greve dos motoristas e cobradores de ônibus forçou muita gente a ir ou voltar do trabalho a pé.

Diante dessa situação, contrariamente do que haveria de se esperar, muitos de meus alunos do primeiro semestre de um curso de direito compareceram à aula de filosofia do direito. Deram um jeito de comparecer. Encararam a falta de transporte público para estudar e debater a “anomia” que assombra feito um fantasma a vida dos juristas formados ou ainda em formação.

Estamos, hoje, vivendo no mundo globalizado, em geral, e no Brasil, em especial, o que o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben chama de “estado de exceção global” ou “anomia”.  A própria lei prevê esse estado, quando, como costuma acontecer para muitas categorias no mês de maio, as convenções coletivas chegam à chamada “data base”. Vencido, por assim dizer, o prazo de validade de uma convenção coletiva, a norma coletiva é suspensa.  Teoricamente, se não há uma convenção, ganha-se o salário mínimo. A greve, meio legal para reforçar a posição dos trabalhadores na negociação de uma nova convenção, suspende as obrigações trabalhistas. Trata-se de um estado de exceção previsto em lei. Quando se volta ao trabalho, a ordem é retomada, volta-se literalmente ao normal. A questão é o que se faz, quando, apesar do acordo, os grevistas não voltam ao trabalho e também não são forçados a voltarem.

Dá angústia perceber o perigo que o estado da anomia causa. Há o temor do caos. Por outro lado, ecoam os discursos daqueles que se pronunciam a favor da velha ordem patriarcal, marcial e autoritária. O que Jacques Lacan chama de Real tem naquilo que os juristas chamam de anomia uma de suas expressões. O Real é sem lei, escapa da simbolização, deixa sem palavras. Causa angústia.

Há milênios, a suspensão da ordem é contornada com a força das armas ou com “pão e jogos”, ou, ainda, com os dois. Será que hoje as respostas são as mesmas de sempre, quando a falta de condução nos deixa em um “mato sem cachorro?” Diante do Real do caos, somos chamados à responsabilidade, como diria Jorge Forbes, a inventar um jeito para lidar com a situação sem chamar a força da velha ordem.

Inventar um jeito os paulistanos sabem.  Tornaram-se verdadeiros craques no que Lacan chama de savoir-y- faire. Haja jogo de cintura para viver numa metrópole com manifestações e greves de várias categorias pipocando e sem ônibus. Prontos para qualquer circunstância, saem de manhã de casa para trabalhar e dão um jeito à noite para voltar..  Calçam o tênis e vão a pé carregando na mochila o sapato social, necessário para manter a elegância. Assim caminham para trabalhar.

Assim, também meus alunos deram um jeito de comparecer à aula. Preocupados em estudar saídas criativas para a anomia, que ainda vai acompanhá-los cada vez mais no exercício da justiça, gastaram energia, tempo e as solas de seus tênis. Para mais uma vez lembrar Jacques Lacan, “pensaram com os pés”. E com cada passo marcaram o caminho em direção a uma sociedade (que ainda vai depender muito da atitude deles) para buscarem soluções para um futuro que está se desenhando no horizonte.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em direito pela Universidade de São Paulo.