Na real, dá para inventar a si no exterior? 29/05/2013

Por Carolina Andrade

Para quem viveu uma análise, a “mesma” experiência é sempre outra. Mesmo sem se dar conta disso, a pessoa não é mais o que outrora foi

Em 2011, foi lançado o Programa Federal Ciência sem Fronteiras com meta para enviar, para o exterior, 101 mil estudantes, entre graduação e pós-graduação até 2015. O objetivo é investir principalmente nas engenharias para que haja transferência de tecnologia no momento da volta dessas pessoas. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) acabou de lançar um portal de estágios para os participantes inscreverem seus currículos e para interessados em contratá-los terem acesso àqueles que tiveram uma experiência no exterior. Não se pode negar o aprendizado que passar uma temporada fora do país traz. Mas, viver no exterior é garantia de aprendizado? O que se aprende se limita à qualificação profissional? Vou comparar duas experiências.

Cenário 1: doutorado sanduíche na Inglaterra. Tese bem desenhada, um orientador, resultado esperado bem definido. País: fala-se inglês, língua estudada desde a pré-adolescência. Mas … E a comida? O que comprar no supermercado? Quais são as regras de convivência? E para qual lado mesmo olhar quando atravessar a rua? O que fazer com a nova forma de pensar e tesear colocada pelo coorientador inglês? Tive que reaprender tudo com a sorte das “instruções” estarem em inglês. Pena que o ser humano não vem com manual de instruções…

Que ia sair da minha zona de conforto eu sabia, a minha reação é que me surpreendeu. Sigmund Freud me interpretou: fui norteada pelo princípio do prazer, pela necessidade de zerar a excitação do aparelho psíquico. Reduzi-me aos instintos básicos de sobrevivência, comer e dormir. Não era apenas aquele ambiente diferente que era hostil. Tornei-me eu hostil a mim mesma. Resultado: dores no corpo, muitas vezes, paralisantes. Ninguém entendia o que se passava, afinal, morar no exterior é sempre visto como algo glamoroso. Algo para pessoas de sorte.

Na volta, haja análise. Anos depois, veio o convite para um pós-doutorado no exterior. Passar por tudo aquilo de novo? Então, descobri que não foi só em como fazer a mala que eu tinha evoluído.

Cenário 2: pós-doutorado na Suécia. A experiência parecia hostil por definição. Se na Inglaterra nunca havia enfrentado -5 graus, aqui facilmente chegamos aos 20 negativos. E o manual, dessa vez, não era numa língua que eu conhecia. Mas, cinco anos depois, apenas sobreviver não era uma opção. Era lutar ou morrer. Saber o que me esperava seria suficiente?

Não. Cada experiência é única. E um dia me disseram que “só sendo uma vaca para saber o que fazer assim que se acorda”. Eu não ia reagir da mesma forma. O que mudou? Dessa vez, não estou limitada ao princípio do prazer. Fui fazer aula de sueco; não fiquei fluente, mas aprendi como eles se comunicam. Não sendo mais estudante, assumi outras responsabilidades profissionais. Suécia e Inglaterra são países muito diferentes. Na Inglaterra, as pessoas adoram uma balada, tudo termina em um pub e, por isso, fazer amigos é fácil; na Suécia, por outro lado, há uma linha explícita entre vida profissional e pessoal, elas não se misturam de jeito nenhum. No trabalho, não há conversas paralelas e cada um cuida da sua própria vida, quase como se não existisse o outro. Se quiser amigos, tem que ir atrás.

A minha reação agora também me surpreendeu. Para quem consegue se abrir ao real, morar em outro país pode ser uma análise constante. O ser humano fica cru, suas fronteiras ficam porosas, sua forma de interagir com o mundo muda. Coloca-se à prova tudo o que se discutiu em sessões. Realize, em inglês, “cair a ficha”, em português, é o que mais acontece. Mas a “cicatriz” do bisturi psicanalítico é a certeza de que passar pela mesma situação não poderia levar aos mesmos resultados. Ter passado pela análise não permitia me render a queixas. Se, antes, para sobreviver, eu havia me limitado a responder instintos animais, agora, eu ia ter que inventar uma forma de encarar esse novo cenário.

Então, sigo realizando, em português mesmo, o que sou. O aprendizado nunca é passivo, e nem aqueles que viajam apenas a turismo conseguem aprender algo se não estiverem abertos à experiência. Sigo usando TODOS os dias as ferramentas que anos de análise me deram. Afinal, não importa o país, carregamos o que somos para qualquer lugar que vamos.

Carolina Andrade é fã da clínica do real. Doutora em Engenharia pela USP, realizou um ano de estágio de doutorado na University of Manchester (Reino Unido). Faz pós-doutorado na Chalmers University of Technology em Gotemburgo (Suécia) onde pretende ficar mais do que um ano.