Por Suelen Gregatti da Igreja
Para o analista, o ditado “onde há fumaça há fogo” ganha a releitura “onde há confusão diante de algo simples, há sintoma”
Quando se começa a estudar psicanálise lacaniana, não é raro ouvir a frase: “uma análise toca o corpo”. A afirmação costuma causar ruído. Em busca de um exemplo para dar a ver seu significado, encontramos um recorte clínico, relativo a uma mulher de trinta anos, há algum tempo em análise, iniciada bela busca de não mais sentir o sufocamento correlacionado com colocar-se no lugar de objeto.
Ao acordar, em um dia comum, mal sabia ela que havia chegado o momento de, corporalmente, lidar com a asfixia. Por saber que sua analista estava sem carro, e por calcular que deveria ser a primeira do dia a ser atendida, ofereceu-lhe uma carona. No caminho, um bate-papo corriqueiro entabulou-se: a lembrança da cerimônia de casamento de uma amiga comum.
Ao comentar a cerimônia, a moça percebeu que não entendia a parte da celebração religiosa dedicada aos votos matrimoniais. Confundia-se na narrativa e se mostrava incapaz de comentar uma coisa que julgava tão simples. Falou, explicitamente, de seu nervosismo. Como, para o analista, o ditado “onde há fumaça há fogo” ganha a releitura “onde há confusão diante de algo simples, há sintoma”, ficou a dica.
A conversa não foi adiante porque, chegando ao destino, havia uma situação com a Zona Azul a ser resolvida. De novo, tratava-se de coisa banal, mas que quase terminou em confusão dado o abafo da motorista. Ainda na rua, a analista pontuou o ocorrido. Adotando um estilo de quem come pelas beiradas, fez perguntas retóricas que, caso tivessem sido respondidas, teriam levado a jovem a se dar conta da afogadora.
As respostas foram poucas e espaçadas. Com um tom irritado, oferecendo a possibilidade de que a jovem deixasse a inércia habitual, a analista não se adaptou ao silêncio engasgado. Ao entrarem no consultório, nem a abertura da porta, nem o acendimento de luzes impediram que o trabalho continuasse. Ainda mais dura, perguntou se a moça havia decidido falar ou ir embora.
A opção foi a primeira. Na verdade, ela havia percebido que, quando muito angustiada, deixava de pensar. Era o que havia acontecido nas duas situações durante o caminho até o consultório. A analista respondeu com um apólogo. Contou-lhe que, quando adolescente, havia descoberto, na prática, a necessidade de nocautear alguém que está se afogando para conseguir salvá-lo. Quando o ar falta, o agonizante morde, arranha, empurra quem lhe ajuda, sem perceber que está gerando uma morte dupla. E concluiu, como quem fosse encerrar a sessão: “- Afogado não pensa. Aliás, ao que parece, nem você. Perdi minhas últimas esperanças”.
Sentindo a premência do tempo, não era hora de parar para pensar. Lembrando-se do assunto do carro, teve a certeza de que precisava fazer seu voto, mas as palavras lhe escapavam. Começou com um “- Se …”. Mal havia terminado a frase, foi interrompida: “-Um voto é incondicional, não é uma hipótese. ”
Respirando fundo, a moça tomou coragem e pronunciou seus votos. Ela cumpriria sua promessa para a analista a qualquer custo. A analista, mais do que prontamente, insistiu no reparo: “- Assim fica condicional. E se eu morrer, o que você faz? ”. Colocar no caixão da analista uma fotografia que documentasse a promessa cumprida seria uma opção. “- Só cumprindo meu voto entenderei a diferença entre desejo e gozo”. A analista encerrou a sessão dizendo: “- Isso você já entendeu”.
A moça tentou ir embora normalmente. Não conseguiu. Começou a respirar ruidosamente, inspirando como quem precisa de muito oxigênio após ficar um extenso período embaixo d’água, sem respirar. Pediu cinco minutos para se recuperar. Seus pés começaram a formigar e ela tirou os sapatos. Começou a esfregá-los no tapete de lã diante do divã. Nas plantas dos pés, sentiu grãos de areia. Precisou inspirar ainda mais profundamente. O oxigênio inflando os pulmões lhe dava um profundo prazer.
Ao se dar conta que, de pé ao seu lado, a analista a olhava tranquilamente, entendeu: para lhe explicar como o apólogo que lhe havia sido narrado lhe concernia, seu corpo havia encenado a sensação de quem consegue se salvar da asfixia. Começou a gargalhar ao notar ter saído do mar de gozo. Afogada, ela vinha se embaralhando com coisas muito simples. Agora, havia optado por colocar os pés na areia. Concluiu: “- Se alguém tem dúvidas de que uma análise toca o corpo, acabo de me transformar em uma prova viva! ”.
Suelen Gregatti da Igreja é professora de língua portuguesa e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo.