Por Alain Mouzat
Entramos então na era da “pós-verdade”. E hoje, nesse mundo desprovido de uma única verdade, será a verdade relativa?
A palavra do ano é “pós-verdade”, anunciou o dicionário britânico Oxford. Entende-se com isso que no debate político atual, os fatos comprovados têm menos poder do que mentiras asseveradas com máxima convicção. A palavra alude a diversas campanhas, do Brexit, de Donald Trump, e poderíamos estender à recente polêmica da política brasileira.
Entramos então na era da “pós-verdade”. É verdade, a verdade como valor absoluto e universalmente confiável já havia sofrido uns abalos. Poderíamos, seguindo as eras tal como Luc Ferry as representou, evidenciar valores de verdade: na antiguidade grega, ao valor transcendente do cosmos correspondia uma verdade natural, da ordem das coisas, que se tratava de constatar. Na era da transcendência cristã, é na verdade revelada, da ordem de Deus, que se deve acreditar. Com a razão, a verdade ganha o estatuto de verdade universal, para todos, da ordem do justo sentido, que se pode compreender. Com a desconstrução, a verdade perde seu estatuto absoluto: ela é da ordem da proposição, e como tal não pode dizer nada fora da dimensão da linguagem.
E hoje, nesse mundo desprovido de uma única verdade, será a verdade relativa? Na ciência não. Ela é absoluta, temporariamente. Na tecnologia menos ainda. Ela funciona, é uma verdade pragmática. Na religião, a verdade da fé desenvolve sua função de tamponamento, à qual tantos recorrem!
Quando se trata de laços sociais, de estabelecer uma relação política, o conceito de verdade torna-se perigoso: todos os abusos foram cometidos em nome de algumas dessas verdades. No Brasil também se pode constatar os efeitos deletérios da verdade convicta, como constata Jorge Forbes no seu texto Fazer-se tolo de um real: o que é crer no sinthoma? “Temos um país em franca guerra civil de palavras […] Dois campos opinativos de tamanhos diferentes se confrontam, cada qual aferrado à sua verdade que, de tão evidente para eles, os levam a acreditar que os outros são canalhas. Mas, se como desenvolvemos, a melhor verdade é a mentirosa, não faz sentido tentar fazer que a morte do outro seja a prova de minha verdade”.
Para a psicanálise, só pode haver “verdade mentirosa”, na medida em que ela é da dimensão da linguagem. Ela é distinta do saber, e nesse sentido é uma verdade que depende da decisão sem tudo saber. Verdade sem saber, opaca, mas experimentada no corpo. Isto é, radicalmente singular.
Mas será possível construir um laço social fundamentado nessa verdade singular, opaca, que não entendo, mas que me assola? Deixemos a conclusão com Jorge Forbes: “A resposta que uma pessoa consegue construir em análise a esta opacidade gozosa, a este estranho mim mesmo (das Unheimliche, de Freud) tem que ser passada no mundo para fazer sentido para a própria pessoa. Donde a necessidade que temos nessa época um dos outros, dos “pequenos outros” como diz o jargão, constituindo um novo tipo de amor não intermediado por qualquer verticalidade padronizada, por qualquer “grande outro”, como por exemplo: pai, chefe, presidente. ”
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, psicanalista e membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.