Por Maralice Neves
A história e a literatura já mostraram que é possível morrer de amor. E de vergonha? As manchetes dos jornais também nos mostraram que sim. Jacintha Saldanha, a enfermeira que se enforcou após cair em trote de rádio australiana, prova como gestos banais podem ter consequências inimagináveis
“Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”
Lacan, “A ciência e a verdade”, Escritos, 1966
“Quando a palavra não é mais necessária para intermediar o que se quer, para refletir sobre o que se teme, para inquirir o que se ignora; quando a palavra perde sua função de pacto social, ficamos suscetíveis ao curto-circuito do gozo.”
Jorge Forbes, Psicanálise do homem desbussolado, 2010
A história e a literatura já mostraram, em inúmeras ocasiões, que é possível morrer de amor – Cleópatra e Julieta que o digam. E de vergonha? Recentemente, as manchetes dos jornais também nos mostraram que sim. Na semana passada, Jacintha Saldanha, enfermeira exemplar do hospital King Edward VII, na Inglaterra, atendeu a uma ligação de dois radialistas australianos que se passaram pela rainha Elizabeth II e o príncipe Charles. Acreditando na veracidade do telefonema, Jacintha transferiu a ligação para o quarto de Kate Middleton, de onde outro enfermeiro transmitiu informações sobre o estado de saúde da duquesa de Cambridge, grávida e internada no hospital. Poucos dias após o incidente, a enfermeira foi encontrada morta. Segundo as investigações policiais, ela se enforcou.
Quando dizemos que alguém deveria “morrer de vergonha” por um ato que cometeu, não esperamos, evidentemente, que a pessoa chegue às vias de fato, mas sim que se redima com pedidos de desculpa ou outras formas de reparação. Por que então a enfermeira Jacintha, conhecida como uma profissional respeitada e popular, preferiu morrer? A mídia interpretou o ato como efeito de um estado de “confusão”. O jornalista da BBC Nicholas Witchell informou que ela teria se sentido muito solitária e confusa após o trote, apesar de não ter recebido reclamações oficiais do palácio e nem represálias do hospital. Não parece haver uma explicação lógica para o ato extremado da enfermeira. Ninguém o compreendeu.
A estranheza da morte de Jacintha toca uma questão que a psicanálise do século XXI está disposta a debater. A psicanálise traz reflexões a partir de dois de seus fortes pilares, a responsabilidade e o ponto de vergonha, conforme desenvolve Jorge Forbes em sua leitura da topologia lacaniana. Diz o autor em seu livro, Inconsciente e responsabilidade: “a vergonha é o fundamento da responsabilidade, porque a vergonha é marcada pelo estranhamento de si mesmo.” Podemos dizer que o estado de confusão da enfermeira foi tal que não suportou tocar esse ponto íntimo da impossibilidade de pedir desculpas ou dar explicações. É um ponto de honra extremamente pessoal. Para muitos, sem esse ponto de basta, melhor nem viver.
O casal de radialistas, por seu lado, agiu irresponsavelmente. Agiu sob a ótica do desbussolamento global, no qual impera a lógica do “vale tudo”. Consultaram até o advogado da rádio para saberem infringiam uma lei ao telefonar para o hospital. Sabiam, portanto, que a justeza de seu gesto não era garantida. Infringiram o princípio responsabilidade que o filósofo alemão Hans Jonas alertou ser a necessidade ética para o futuro. Cada um precisa lembrar que seus gestos podem ganhar uma ordem inédita de grandeza, uma dimensão coletiva nunca antes imaginada. Que o diga esse gesto inconsequente praticado por dois profissionais que, diariamente, se expressavam em um meio de comunicação de massa. Estes terão que se haver com as consequências de seu gesto e lembrar que, como afirma Jorge Forbes, “toda ação é arriscada e inclui a responsabilidade do sujeito”.