Momentos de um novo amor nos anos de chumbo 29/05/2013

Por Griseldis Achôa

A motivação para escrever e falar sobre um tempo tão sofrido e ao mesmo tempo, absolutamente estruturante da minha vida veio com uma notícia sobre a abertura do Museu da Resistência, que foi criado para preservar a memória dos atos de resistência contra o regime militar instaurado em 1964

Encontrei minha ficha policial na internet e fui ao DOPS em busca dos documentos e hoje, com orgulho, posso mostrá-los.

Vivi o surgimento tímido e esporádico de ações que indicavam uma mudança de paradigma, do puro idealismo ao que hoje chamamos de novo amor.

O conceito de novo amor é apresentado e desenvolvido por Jorge Forbes em termos de um novo laço social na contemporaneidade e como efeito de uma análise.

O novo amor decorre do fato de que os valores verticais como a pátria, a revolução e religião, através dos quais estruturávamos nossas vidas já não funcionam na sociedade globalizada. No texto Um novo amor está no ar, Forbes afirma:

“O novo amor da pós-modernidade representa um novo tipo de humanismo, uma transcendência laica. Se não morremos mais por grandes causas, morremos por quem nos toca de perto, por quem divide nossa vida no impossível do vazio das grandes causas”.

Hoje vale a pena morrer por aqueles que amamos. Quem mobiliza nosso amor é o outro. Podemos nos sacrificar pelos filhos, pelos amigos, por alguém que pede e precisa de nossa ajuda.

E como diz Forbes, estou com você porque quero e, para isso, não há explicação. Cito-o, no Seminário Inconsciente e Responsabilidade: Um novo amor, aula 4, de 24 de setembro de 2002: No amor, não há outra razão senão “porque eu quero”.

O Brasil e o regime militar na década de 60

Após a deposição do Presidente João Goulart em 1964, o governo militar passou a conduzir o processo eleitoral de maneira a adequá-lo aos seus interesses. Em 1968, o Presidente da República era o Marechal Artur da Costa e Silva, segundo presidente do regime instaurado pelo Golpe Militar de 1964.

O governo Costa e Silva iniciou a fase mais dura e brutal do regime ditatorial militar. Em 13 de dezembro de 1968 ele promulgou o Ato Institucional Nº 5 – AI-5, que ampliou os poderes presidenciais permitindo-lhe fechar o Congresso Nacional, cassar políticos eleitos e institucionalizar a repressão e a tortura.

Como tudo começou para mim

Bem nascida, filhinha de papai industrial, fui treinada para ser esposa e mãe. Curso de piano, línguas, boas maneiras, bolos artísticos e toda uma parafernália de cursos e conhecimentos, os quais eu só queria era mandar para bem longe. 

Desde muito pequena eu já tinha decidido qual seria meu futuro, com certeza a medicina. Carreira esta que não ia ao encontro das expectativas de minha família.

Quando terminei o colegial em 67, prestei vestibular para medicina, escondido, claro. Pensei que se eu passasse nas provas seria tarde demais para ser impedida de fazer o que queria. Entrei na Pinheiros.

Voltei para casa, esperei meu pai chegar do trabalho e anunciei: Pai, mãe, tenho uma surpresa para vocês, entrei na medicina! Em vez de abraços e beijos de felicitações, veio a sentença: De maneira nenhuma! Filha minha não nasceu para sofrer e além do mais, medicina não é profissão de mulher !!!! Escolha qualquer outra carreira.

Fiquei pensando, que faculdade posso escolher para aterrorizar quem me frustou? Engenharia, é claro! Na época meninas não estudavam engenharia.

Entrei no Mackenzie e na FEI – Faculdade de Engenharia Industrial, optei pela FEI. Era longe de casa, em São Bernardo, sem mauricinhos e patricinhas e o que era melhor, descobri que eu era a única aluna mulher da faculdade toda.

Durante o trote foram derrubados alguns signos da minha vida anterior: os cabelos loiros e longos receberam um banho de ovos, farinha e finalmente foram pintados com zarcão, aquela tinta vermelha que se usa para proteger estruturas metálicas.

Em minha testa escreveram “Filha de PUC”, na época a FEI pertencia à Pontifícia Universidade Católica e lá fui eu pedir dinheiro no farol para comprar cerveja para os veteranos. O zarcão não saiu do cabelo, tive de cortar curtinho. Cabelo cresce e eu, como o cabelo, tambem cresci.

Nos intervalos das aulas eu via vários colegas se dirigirem a uma sala ao lado do estacionamento, fui ver do que se tratava, era o Centro Acadêmico. Um veterano me disse, vamos mudar o futuro do país, todos terão as mesmas oportunidades. Você gostaria de participar? Concordei, sem saber muito do que se tratava.

Em Paris o movimento estudantil crescia; na USP as reuniões aconteciam nas madrugadas. A UNE – União Nacional dos Estudantes apontava a direção da vida dos estudantes engajados na causa da liberdade e da igualdade.

O mimeógrafo funcionava dia e noite imprimindo palavras de ordem, para panfletagem: Abaixo a ditadura! O povo unido jamais será vencido! A UNE somos nós, nossa força e nossa voz! Abaixo MEC-USAID!

A denúncia ao acordo entre o Ministério da Cultura e o órgão governamental norte-americano United States Agency for Internacional Development (USAID) tornou-se a principal bandeira de luta dos estudantes universitários.

– O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, dizia o embaixador Juracy Magalhães sobre este acordo.

Não se tratava apenas de alinhamento político e econômico aos EUA, mas também de impor um modelo cultural e social que servisse aos interesses americanos gerando uma grande dependência do Brasil àquele país.

Numa manhã de Maio, fomos convocados pelas lideranças do Centro Acadêmico, a nos sentarmos pacificamente no chão, na entrada do prédio principal da FEI para impedir que o exército invadisse a escola.

A ordem recebida era a de destruir todo o material considerado subversivo que fosse encontrado: panfletos, livros, manuais de guerrilha. No fim das buscas os soldados fizeram uma fogueira no pátio e o que vimos? A morte lenta de livros de Resistência dos Materiais e de manuais de Bombas Hidráulicas. O departamento de mecânica ficou bastante desfalcado e nós rimos muito da situação.

Minha militância política

Após a invasão da escola, ao mesmo tempo em que o espírito de patriotismo aumentava em nós, o exercício político se tornava mais organizado. Saímos do amadorismo do Centro Acadêmico e nos unimos ao PCB e depois ao PC do B, ligado à linha chinesa.

A filiação ao Partido foi ritualística; assinamos nosso nome com sangue tirado de um corte no pulso esquerdo, simbolizando que a adesão estava ligada em linha direta com nosso coração. As aulas práticas de guerrilha eram dadas na Serra do Mar, sendo que ficávamos acampados dois ou três dias treinando como lutar e sobreviver na mata.

Aprendi a fazer coquetel Molotov e fiquei como responsável do meu grupo por fazer e levar as garrafas nas passeatas. Para combater a cavalaria, eram usadas inocentes bolinhas de gude que faziam os cavalos tropeçarem.

A direita, se organizava em grupos: o CCC – Comando de Caça aos Comunistas e a TFP – Tradição Família e Propriedade, ligado à Opus Dei, da Igreja Católica.

Torturadores e assassinos

Ouvíamos histórias de torturas e víamos nossos colegas desaparecerem de um dia para o outro. Tínhamos muito medo, especialmente, de dois delegados, que se transformaram quase que em mitos.

O poderoso chefão, Sergio Fleury, era uma figura polêmica da repressão. Nenhum outro policial, em qualquer período da história do país, incorporou com tanta convicção e brutalidade o Estado repressor.

O outro era o delegado Paulo Bonchristiano, o “Mr. DOPS”. Ele chefiou a Divisão de Ordem Política e Social na mesma época em que esta era comandada por Fleury.

Os dois delegados amparados pela estrutura política, equipamentos de tortura e pelo pessoal treinado no DOI-CODI eram, ao mesmo tempo, nossa representação do medo e da vontade de continuar lutando.

A situação piorou em outubro

Tudo começa com a chamada “Batalha da Maria Antônia”, em 3 de outubro de 68, confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia da USP e do Mackenzie. Os alunos das duas universidades se diferenciavam pelo posicionamento social e político; os do Mackenzie eram simpatizantes do regime e alguns eram integrantes do CCC, enquanto que os da USP eram notadamente de esquerda.

O 30o Congresso da UNE em Ibiúna, foi marcado para 13 de outubro, mal havia começado, quando, por conta de uma denúncia de um morador, foi desmontado pela polícia.

O delegado Paulo Bonchristiano comandou a “Operação Ibiúna”, e colocou na cadeia toda a direção da UNE, entre os quais o ex-ministro José Dirceu, na época presidente da UEE e mais de setecentos estudantes que participavam do congresso. Eu consegui fugir junto de alguns amigos.

A prisão de tantos estudantes foi a gota que faltava para empurrar o movimento da clandestinidade para a ilegalidade. Depois dessa data, a ordem era entrar para a luta armada e organizar a guerrilha contra o regime militar. Do sectarismo ao ensandecimento, foi um passo.

Fiquei muito angustiada com o que aconteceu, quase todos meus companheiros estavam no Presídio Tiradentes, a organização estava temporariamente desmantelada.

Bolei um plano. Na FEI havia um padre que era nosso amigo, Padre Giovanni Cometto, que apesar de padre era mais comunista que todos nós juntos. Falei para ele que, como padre, talvez tivesse autorização para visitar os meninos na prisão, a título de lhes oferecer amparo espiritual.

Padre Giovanni concordou em tentar e pedi para ir junto. Fomos para lá, senti um frio na espinha quando o barulho da porta metálica fechou atrás de nós, mas eu estava decidida.

Fomos recebidos por um delegado e antes que o padre começasse a falar coloquei em prática meu plano: falei quase aos gritos – vocês são mesmo uns incompetentes, eu estava no trigésimo e não fui presa, seus babacas. Eu vim aqui para me entregar! Não vão me prender não?

O coitado do padre ficou petrificado, quase morreu de susto, tentou me contradizer, mas o delegado não deu a mínima importância.

– Ah, então a mocinha quer ser presa, não é? Está bem, vamos lá.

Uma policial me deu uma roupa de presidiário e pegou meus pertences.

Vamos dar uma voltinha, falou o delegado, para conhecer sua nova casa. Durante o percurso pela prisão o delegado fez questão de passar pelas alas de presos comuns, foi muito triste vê-los e muito humilhante ouvir suas gracinhas.

Quando chegamos ao local onde estavam os presos políticos, em um pátio, o delegado me deixou procurar algum conhecido. Achei um colega, ele sabia onde os outros estavam e conversamos por uns dez minutos.

Os meninos nem acreditavam na loucura que eu tinha feito – Loira você pirou, isto aqui não é brincadeira… Falei, só quero ficar com vocês vai dar tudo certo.

O delegado me chamou e fomos à sua sala novamente, o Padre Giovanni ainda estava lá… O delegado falou para mim, com voz de comando: Vá para a sala ao lado, lá vai encontrar sua roupa, se troque, não diga nem uma palavra e volte para casa antes que eu me arrependa.

Pensando sobre o ocorrido, vejo que neste dia aconteceram duas mudanças de paradigma, a minha, que esqueci a pátria, a revolução e a própria liberdade, para estar ao lado de meus amigos. A outra, de um agente da ditadura que esqueceu que, ordem dada é ordem cumprida e não me prendeu, deixou apenas eu ficar um pouco com quem eu queria e que talvez tenha compreendido que existem várias formas de amar.

14 de novembro de 68 – A prisão

Na noite anterior às eleições, fui com dois colegas e um líder sindical que conhecia a região, para São Bernardo do Campo, colar, por cima dos cartazes dos candidatos, faixas com o slogan “anule seu voto”, pois os candidatos eram escolhidos pelo regime militar. Fomos num carrinho que existia antigamente, um DKV Vemag.

Já passava de meia-noite quando percebemos que uma perua Caravan, igual àquelas utilizadas pelo DOPS, estava nos observando. Jogamos dentro do carro, as faixas, cola, pinceis e saímos correndo.

Realmente eles estavam atrás de nós. Quando chegamos à Via Anchieta, sentido Santos, com polícia cada vez mais perto, joguei o material da campanha pela janela, para eliminar provas. Uma lata de cola bateu no canto do para-brisa da Caravan.

Estávamos passando pela frente da fábrica da Mercedes Benz, o líder sindical falou para o Lino; desce pelo barranco que eu conheço um portão de serviço que está sempre aberto, a gente atravessa o pátio e sai pelo outro lado.

Realmente, o portão estava aberto, só que ele era estreito demais e o DKV ficou entalado entre as duas colunas. Sirenes, polícia, cachorros, estávamos presos.

Fomos retirados do carro e algemados. Logo em seguida chega a Caravan que nos perseguira, com a cola escorrendo pelo para-brisa e alguns dos nossos cartazes.

Destino – delegacia de São Bernardo e na manhã seguinte, DOPS.

O interrogatório foi feito por Mr. DOPS, que me perguntou: Você sabe com quem está falando? Respondi que não, mas pelo local e circunstâncias, com algum torturador de estudantes inocentes.

Ele me disse: pelo jeito você não tem amor à vida, não é? Respondi que tinha sim, mas que sabia muito bem que a minha vida não tinha o mínimo valor para ele.

Paulo Bonchristiano me diz, vamos avaliar qual é o valor da sua vida, você vai ser interrogada pelo Delegado Fleury, este você conhece não é? Respondi que sim. Ele chamou um guarda e disse: leve a comunistazinha de merda, para a sala de música.

A tal sala de música era completamente escura, achei que estava sozinha, mas ouvia uma voz que falava comigo e vinha de algum alto falante: como é mesmo o nome do seu amigo que estava dirigindo o carro? Lino, não é? Escuta ele está cantando.

Era aterrorizante, eu ouvia gritos de alguém sendo torturado, depois de um tempo de gritos, choro e súplicas, o barulho de um tiro e o silêncio. Em seguida, a voz falava sobre outra pessoa que estava junto no carro e a cena se repetia, eu tinha a absoluta certeza de que ia ser a próxima.

No dia seguinte, fui interrogada pelo Delegado Fleury, as perguntas de praxe eram repetidas por horas, para ver se eu sabia de algo que lhes interessasse sobre os planos do movimento. Ele, depois de dois dias, me deixou ligar para casa.

Os dias passavam, não me deixavam dormir, as luzes sempre acesas e os gritos. Tive muito medo que meus amigos estivessem mortos.

Cerca de 10 dias após a prisão, fui chamada novamente. Estava com muita fome e sono, sem tomar banho todo este tempo, me sentia no limite da minha sanidade mental. Lá estava eu diante de Mr. DOPS de novo, mas havia outro homem que me olhava de forma amigável, era o Dr. Ivo Cury, advogado que minha família havia contratado.

Paulo Bonchristiano pergunta se estava tudo bem comigo, se tinha sido bem tratada: falei que sim, pois estava viva e ele falou: por enquanto você pode ir embora, mas veja se aprende a lição, quem manda aqui somos nós.

Até abril ou maio de 69, fiquei sem sair de casa, pois estava em liberdade condicional e vigiada de perto pela polícia. A situação piorou depois que fizeram uma busca no apartamento. Meu pai resolveu me mandar para a casa de uma família de amigos dele.

Recentemente, mais de quarenta anos depois, conversando com a viúva deste homem, para minha absoluta surpresa, vim saber, que ele era o chefe da tortura do DOI-CODI. Ela garantiu para mim que não sabia das atividades do marido, na época. Creio que meu pai sabia o que estava fazendo, a casa de um torturador era o lugar perfeito para esconder uma filha vigiada pela polícia política.

Ele GP, que matava e torturava em nome da pátria, colocou a própria vida em risco para me esconder em sua casa. Meu pai, por sua vez, acreditou em algo que poderia transcender à amizade e que seria mais forte que a ideologia.

Outro acontecimento marcante

No final de 69, depois de vários incidentes com a polícia, meus pais decidiram me mandar, por dois anos, para a Europa. Para não viajar, resolvi que me casaria em janeiro, pois assim ficaria perto dos meus amigos.

O casamento seria na Igreja Católica para reforçar minha posição de ex-comunista. Eu não era batizada e para casar na igreja o batismo é indispensável. Falei que só me batizaria na capela da FEI e com o Padre Giovanni. Minha família discordou. Tudo bem, eu iria sozinha.

Não contei do batizado para ninguém, pois sabia que meus amigos comunas não iam concordar. Combinei com o padre para o dia 9 de novembro, ele pediu para eu vir vestida de calça jeans com uma camiseta branca.

Na antessala da capela padre Giovanni me falou; vou vendar seus olhos com um lenço, aproveite e reze um pouco antes do batizado. Dali a pouco pediu para eu levantar os braços, senti que estava sendo vestida e meu cabelo foi solto.

Era um vestido longo branco, entremeado de renda, muito lindo. Antes que eu dissesse algo, o padre Giovanni me levou para a porta da capela e ao entrar recebi um ramo de rosas brancas. A capela estava cheia e o chão, até o altar, coberto de pétalas.

Meu amigo William, o mais ferrenho dos militantes e que foi preso comigo, me tomou pelo braço para conduzir ao altar. Parecia um filme, à medida que íamos caminhando eu ia reconhecendo todas as pessoas de quem escondi meu batizado, com medo de ferir nossos ideais. Neste ato meus amigos encarnaram a face do novo amor.

45 anos depois

Hoje somos livres, porém não se pode esquecer que esta liberdade foi conquistada com luta, sangue, sofrimento e morte.

Ao cair, a ditadura mostrou a fraqueza do poder imposto de cima para baixo e abriu caminho para a globalização.

A psicanálise me levou a encontrar, em alguns recortes do passado, o surgimento de um novo amor e me mostrar que fatos e pessoas podem ser recontados.

Hoje, vejo que lutar e até morrer pela pátria era, na verdade, morrer pelo outro que estava logo ali, do meu lado.

E como disse Chico Buarque, em Roda Viva:

“Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião.”

“O tempo passou num instante, nas voltas do meu coração.”

Doutora em Engenharia pela Escola Politécnica da USP. Psicanalista, membro do Corpo de Formação do IPLA e pesquisadora na Clinica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano – USP.