Minha escolha pode ser a morte? Uma resenha 01/07/2021

Dorothee Rüdiger

Será que, um dia, doente e, quiçá, à beira da morte, terei o direito de me recusar a ser tratada, se não quiser? Eis a questão fundamental do trabalho monográfico “A recusa do tratamento médico: um direito personalíssimo” de autoria de Luiz de Figueiredo Forbes, escrito em 2008.  Para responder a essa questão o autor perfila princípios que percorrem, feito um fio vermelho, o direito.

A questão de poder recusar o tratamento médico é de uma premência ímpar em tempos de pandemia nos quais uma considerável parte da população (nos Estados Unidos, por exemplo, em torno de 30%) se recusa a tomar vacinas contra o vírus COVID-19 e com isso corre o risco de adoecer seriamente além de infectarem outras pessoas.   Ademais, as questões tratadas por Luiz Forbes são de extrema relevância numa época na qual a vida pode ser prolongada por anos através de aparelhos médicos, sem que, no entanto, o paciente possa aproveitá-la e, por que não, gozá-la?

Ao longo do ensaio, o autor responde a várias questões jurídicas de fundo: O que é o direito chamado de “personalíssimo”?  Em que circunstância pode-se fazer uso desse direito?  Há regras para esse uso no campo da biologia e da medicina?  Como se configura o fio condutor ético-jurídico que perpassa esses campos do saber?  O que são respectivamente o “consentimento informado” e a “recusa informada”?  Como a recusa informada se distingue da ortotanásia, do suicídio assistido e da eutanásia? Outra questão: como posso manifestar minha recusa? Preciso ser maior de idade? Posso deixar alguém decidir por mim, se não tenho mais condições para tanto?  E, se minha religião proibir certos tratamentos médicos?  Será que há legislação no exterior que possa, dentre outras regras, informar um juiz em sua decisão sobre um caso concreto de recusa de tratamento?

São muitas questões relevantes numa sociedade em que as ficções científicas de outra hora já se realizaram.  E, enquanto a bioética já tem seus conceitos cunhados desde os processos de Nuremberg que aconteceram em 1947, o biodireito anda a passos lentos dada a dinâmica do desenvolvimento da biologia e da medicina, como, aliás pudemos acompanhar, em 2008, na questão do uso de células-tronco para pesquisa científica, questão na qual a bióloga  Mayana Zatz   e o psicanalista Jorge Forbes foram consultados  pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil.

Sobre a questão da recusa do tratamento médico não há regras claras. No entanto, como diz Luiz Forbes, quanto à “rejeição ao tratamento podemos afirmar que é um direito essencial da pessoa humana”. Deve, portanto, ser formalizado como direito personalíssimo, de acordo com o autor, por uma reforma do artigo 15 do Código Civil.

Mas, o que são “direitos personalíssimos”? Essa questão leva a outra, mais funda e extremamente relevante também para os psicanalistas: O que é uma pessoa humana? Até há pouco nem todos os seres humanos eram pessoas. Havia escravos sem personalidade. Apreendemos com o autor que personalidade é um status jurídico, um Leib, para lembrarmos nossas discussões na psicanálise lacaniana, um corpo que se diferencia do corpo físico, do Körper.   A personalidade dá acesso a direitos, dentre outros personalíssimos que são os direitos que podem ser exercidos somente pessoalmente. Exemplo são o voto e o casamento. O pátrio poder, em 1988, deixou de ser um direito personalíssimo do pai, o que mostra que os conceitos jurídicos são flexíveis. Se moldam à sociedade e seu movimento histórico.

No entanto, o exercício de direitos personalíssimos não se dá num espaço vazio. É atravessado por “preconceito social, racismo disfarçado, pobreza do indivíduo ou outras circunstâncias” que possam atravessar as decisões médicas no limite da vida, daí a necessidade do biodireito.

O autor faz um exaustivo levantamento de casos, nos quais preconceitos atravessaram pesquisas sociológicas, biológicas, antropológicas e médicas, pesquisas que foram criticadas e que levaram a um código de ética que hoje é aplicado quando se trata de experiências científicas que envolvem seres humanos. O autor cita várias experiências nas quais se passou dos limites da crueldade nessas experiências, tais como o experimento de Willowbrook, nos USA dos anos 1960, no qual se testou o tratamento de hepatite com gamaglobulina em crianças internadas com retardo mental, ou da Universidade de Tuskegee que fez , nos anos 1940,  um estudo com trabalhadores rurais infectados com sífilis durante o qual os pacientes não recebiam medicamentos capazes de combater a doença para que os estudiosos pudessem acompanhar o desenvolvimento da doença.  Foram experiências que lembraram as experiências médicas feitas nos campos de concentração nazistas. Essas experiências foram realizadas contrariando a ética médica que existe desde Hipócrates que viveu na Grécia entre 460 e 377 a.C.

A bioética contemporânea nasceu quando o médico psiquiatra Leo Alexander formulou os princípios de um código de ética que informaram as decisões tomadas pelo Tribunal de Nuremberg que, em 12 julgamentos, sentenciou os crimes contra a humanidade praticados pelos líderes nazistas.  Foi criado um decálogo de princípios que o tribunal adotou em seu julgamento.  Em seu núcleo, o código ético estabelece que pesquisas médicas devem ter como objetivo maior o bem da sociedade, devem ser conduzidas segundo critérios científicos apropriados, devem evitar qualquer tipo de coerção e visar o benefício das pessoas analisadas (FORBES, 2008, p. 16). Estabelece que “o consenso do sujeito humano é absolutamente essencial”.

O Código de Nuremberg teve vários sucessores internacionais que todos, em síntese estabelecem que ninguém pode ser lesado por procedimentos científicos e médicos.  Por isso, é necessário que o paciente dê seu “consentimento informado” para o tratamento, isto é, que concorde sabendo o que será feito com seu corpo.  Em outras palavras: se é necessário dizer “sim” ao tratamento, é óbvio, que se possa também dizer “não”. Sendo paciente tenho autonomia da escolha!  

No entanto, essa escolha não é fácil, não é tão fácil, uma vez que aqui deixamos o campo da lógica aristotélica e entramos no campo da verdade contingencial que independe das circunstâncias, nas quais as decisões são tomadas.  O campo das decisões não é objetivo, é minado por juízos de valor, pela religião e pelos preconceitos.

Por isso o autor alerta que devemos distinguir entre várias posturas frente a pacientes que chegaram ao final da vida:  a recusa ao tratamento, a ortotanásia, o suicídio assistido e a eutanásia.   Enquanto a recusa ao tratamento pede uma omissão, a ortotanásia, o suicídio assistido e a eutanásia causam ativamente a morte de alguém.  Na ortotanásia, para evitar o prolongamento do sofrimento de uma pessoa em estado vegetativo, desligam-se aparelhos que mantêm  a pessoa artificialmente viva.  No caso do suicídio assistido, alguém ajuda a uma pessoa a se matar. Foi esse o caso de Sigmund Freud quem pediu a seu médico uma overdose de morfina.  A eutanásia é o procedimento mais questionável e até condenável, quando praticado por dever jurídico ou moral, como era o caso da eutanásia praticada pelo regime nazista que matou em torno de 100.000 pessoas com deficiência física e mental em suas clinicas de extermínio.

Para ilustrar as distinções conceituais entre recusa ao tratamento, ortotanásia, suicídio assistido e eutanásia, o autor cita uma rica casuística, na qual se destaca o caso da alemã Bettina Schardt, uma senhora de então 79 anos, que em 2008 tomou um coquetel mortal de Cloroquina com Diazepan com a ajuda de um assistente, Roger Kusch,  para dar fim a sua vida, porque se sentia velha.  O suicídio assistido, até hoje, não é permitido na Alemanha.

A ortotanásia permite que a morte ocorra: “… maior objetivo é deixar a natureza seguir seu curso”, diz Forbes.  Moralmente mais aceita, ela está permitida em alguns países, como, por exemplo, na própria Alemanha.

Por fim, o autor chega à recusa ao tratamento que levanta algumas questões jurídicas relevantes.  A Lei deve colocar limites para evitar abusos desse direito por parte de clínicas que possam estar interessadas em ter um  leito vago, por exemplo. Em tempos de pandemia essa questão ganhou relevância, uma vez que há situações em que há filas para um leito de UTI.  Médicos podem desligar os aparelhos de um paciente entubado sem chances de sobrevida?  Se fosse por uma Lei do Estado do Texas, em 1999, isso seria possível.

Hoje médicos necessitam de autorização para tanto. E, como o exemplo mostra, essa autorização muitas vezes não pode ser dada pelo próprio paciente. Se ele não deixou diretrizes antecipadas, não deixou uma ordem expressa para não ressuscitá-lo, não deixou nem um testamento vital, como fazer? Quem decide sobre a vida e a morte de alguém?  O parceiro, os filhos, os primos, os amigos?  Mais uma vez, o autor cita uma série de casos da jurisprudência norte-americana em que a decisão sobre o desligamento de aparelhos médicos chegou aos tribunais e nos quais os pacientes “sobreviveram” durante anos com a ajuda desses aparelhos.  Essa jurisprudência chegou em 2005 a uma importante decisão proferida pelo Juiz George Greer quem questionou: “Se o paciente pudesse escolher, qual decisão tomaria?” É essa a questão, hoje, que deve guiar cônjuges, filhos, pais, parentes próximos e até amigos, nos Estados Unidos, quando são chamados a decidir no lugar de um próximo que está em estado terminal.

E se a religião impõe a recusa ao tratamento médico por não aceitar, por exemplo, a transfusão de sangue?   E se a religião não permite tratamento algum? Os adultos ou até adolescentes podem se recusar a serem tratados, desde que saibam o que estão fazendo. Mas, será que pais podem se recusar a tratar seus filhos?  Há religiões que permitem isso…. E os juristas se debatem com a questão, se a fé deve ser respeitada ou não.

O autor nos mostra que nos Estados Unidos já tem uma rica jurisprudência capaz de regrar o procedimento médico. E no Brasil?  Temos o Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina que, desde 1988 estabelece que o paciente tem o direito de decidir “sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”.  Existe uma lei do Estado de São Paulo que regulamenta os direitos dos usuários dos serviços de saúde de São Paulo que vai no mesmo sentido.  No entanto, não há, até hoje, uma lei que permita a ortotanásia.

Resta a pergunta, se, ao final da vida sem chances de ter uma “vida qualificada”, minha escolha pode ser a morte. Posso me recusar a aceitar tratamentos que prolongam minha vida. Mas, no Brasil, por hora, não posso pedir, tal como Sigmund Freud, uma overdose de morfina para acabar de uma vez por todas com um sofrimento atroz.  

São Paulo, 8 de junho de 2021