Por Leda Guerra
O psicanalista, a partir da posição de secretário da angústia e do sofrimento subjetivo do paciente psicótico, abre para novas formas de invenção da vida.
Menos que nada é o títulode um filme realizado pela produtora gaúcha Prana Filmes, com direção de Carlos Gerbase. Trata-se de uma adaptação do conto “O diário de Redengonda”, de autoria do médico e escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), contemporâneo e admirado por Sigmund Freud.
A linguagem literária de Schnitzler foi sendo demarcada por uma arguta observação do comportamento humano e traçada por uma forte dramaticidade psíquica. Não foge à regra o conto intitulado “O Diário de Redegonda”. Texto curto, de apenas oito páginas, mas profundamente pujante e inspirador do longa-metragem brasileiro aqui em pauta. A adaptação do conto de Schnitzler migra de Viena para ser posto, cinematograficamente, num contexto brasileiro. Do ponto de vista temporal, uma mudança não menos significativa: em vez de final do século XIX, ele vem acontecer no início do século XXI.
A trama sobre a qual suponho ser possível uma leitura à luz da psicanálise refere-se ao trabalho de uma jovem estudante de Medicina, residente em um hospital psiquiátrico. A personagem, Paula, escolhe para seu trabalho de conclusão de curso o estudo de caso clínico de um dos pacientes, o personagem Dante, interpretado por Felipe Kannenberg, paciente dado por incurável. A residente, contudo, não aplica o rótulo de doente “crônico” atribuído a ele por outros médicos. Obstina-se então a escrutinar a história de Dante através de uma busca com pessoas que haviam convivido com ele no passado, haja vista que o personagem deixara de fazer uso da linguagem e há anos estava vivendo neste hospital sem nenhuma visita de parentes ou amigos. Os prontuários médicos do paciente inexistiam, bem como sua história clinica enenhum dado que mostrasse as razões do diagnóstico de psicose.
O diagnóstico na psicanálise, a partir de Jacques Lacan, parte da premissa de que a pessoa não nasce psicótica. A formação do psiquismo se dá a partir da estruturação de três modalidades distintas, neurose, psicose, perversão, respostas diante da castração, experiência humana vivida como uma falta radical. Na psicose, havendo tal estrutura, a pessoa poderá vir a desencadeá-la. E é justamente esse processo que a película de Gerbase privilegia, mostrando seu protagonista ainda menino e até a vida adulta.
Nesse filme, graças a uma posição ética fundamental na escuta, adotada pela estudante de medicina, podemos ver o percurso de vida que faz o paciente.Dante consegue falar do seu sofrimento, daquilo que o afastou da vida e do momento do seu tropeço ou da sua primeira crise psicótica. A partir desse encontro,abriu-se apossibilidadedeleconstruiroutra forma de alteridade.
O filme mostra-nos que embora os conceitos de psicose e esquizofrenia, em suas formas mais rigorosas, não apresentem possibilidade de cura, isso não quer dizer que o paciente perdeu sua condição humana. “Freud diz que, ao contrário de uma neurose, a esquizofrenia não tem cura. Mas seu objetivo em muitos casos era transformar o sofrimento mental quase insuportável em infelicidade comum. É isso que podemos tentar. Não é muito, talvez seja menos que nada, mas é o que temos”.
Jacques Lacan deu outro estatuto e tratamento à psicose,ao afirmar que ela não é simplesmente o desenvolvimento de uma relação imaginária, fantasmática com o mundo exterior. Privilegiou a incidência significante que deflagra os fenômenos da psicose. Desvelou os “fenômenos elementares” ao concebê-los como “fenômenos de linguagem” e assim o tratamento pela palavra possibilita que o paciente faça a experiência da sua própria psicose. O analista, a partir da posição de secretário da angústia e do sofrimento subjetivo do paciente, abre para novas formas de invenção da vida, afinal, como afirma Lacan: “E o ser do homem não somente não poderia ser compreendido sem a loucura como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como o limite da liberdade.”
Leda Guerra é psicanalista, historiadora e professora da Universidade Federal de Alagoas