Médico na marra 15/05/2014

Por Alain Mouzat

Na vida comum, fazemos frente a nossos medos, tentamos tecer alguma imagem que nos  protege dos outros, e que  funciona … mais ou menos

Me desculpem os homens da arte, mas me sinto obrigado a dar meu pitaco. Ninguém me obriga, é verdade. Só o respeito pela inteligência alheia.  Isso me lembra um velho grafite contra Giscard Destaing, na época em que o dito cujo era presidente da República francesa (lá pelos idos de setenta, do outro século): “Ele só parece inteligente porque nos trata como burros”.

Essa é a desagradável sensação que tive ao ler uma crônica na Folha de S. Paulo, segunda-feira, dia 11 de maio, assinada por uma neurocientista.  Nessa crônica, a autora nos relata um episódio que não é tão incomum nos consultórios dos psicanalistas e que ela chama de “ataque do pânico”. Ela descreve que, a bordo de um avião, foi “acordada por uma tensão súbita e intensa na garganta, pressão no peito, falta de ar, o cérebro berrando o alerta de que algo estava drasticamente errado e que uma catástrofe fisiológica era iminente.”  

Como é bonito dito assim! A cena parece saída diretamente do Médico à força, de Molière, em que Esganarelo, fazendo a vez de um médico, consultado pelo velho Geronte para saber por que sua filha não fala. Esganarelo não hesita em dar seu diagnóstico: “um ignorante teria ficado embaraçado e teria lhe dito é isso, é aquilo…  mas eu vou lhe informar:  porque sua filha é muda”.

A explicação é dada: temos medo da morte (a “catástrofe biológica iminente”!) sem razão; por causa da “ativação extrema e fora de hora de neurônios no tronco encefálico que monitoram o nível de gás carbônico no sangue”. Entendi, enfim.

É bom pensar assim: se o medo da morte me assola sem razão, me invade, até me sufoca, não tem nada comigo. É só gás carbônico no sangue. Ufa!

Soluções: um remédio, um ansiolítico, ou simplesmente o bom senso: esperar, respirar fundo, e se convencer de que a crise não tinha razões.

Saber que se minha filha não fala é porque ela é muda, resolve.

Mas, na peça de Molière a verdade é conhecida: é o amor!

Na vida comum, fazemos frente a nossos medos, tentamos tecer alguma imagem que nos protege dos outros, e que funciona, pode ser a figura do ranheta, a figura do simpático, a figura daquele que sabe, do vencedor etc… funciona mais ou menos. Mas continuo sendo o que sou, e sempre estarei ameaçado pelos meus fracassos, pelo meu insucesso no amor, pela íntima convicção de que estou enganando. A esse inimigo interior posso tentar iludir, achar respostas nos outros: mais um namorado se foi? Ainda bem, ele era pão duro e minhas amigas já tinham me avisado que não combinava, melhor sozinha que mal acompanhada…  Posso tomar algum antidepressivo conhecido, que vai me pôr pra cima, comprar uma roupa nova. Tudo bem. As repostas já prontas não faltam. E todas têm o mesmo efeito: tentar recobrir o rasgo e evitar que se considera o que temos a ver com isso, a nossa responsabilidade.

É chocante: alguém é acometido de um “ataque de pânico” e você quer responsabilizá-lo por isso? Sim, mas entendamos, não se trata de dizer: bem feito, ele procurou… Trata-se de dizer exatamente o contrário da nossa neurocientista (já estou ficando íntimo): se você tiver um ataque de pânico, pode tentar sair da crise pelo bom senso olhando à sua volta e se acalmar, pode também tomar um ansiolítico para ver se resolve, mas tenha certeza de uma coisa: ele não é sem razão.

Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana