Médico na marra II 05/06/2014

Por Alain Mouzat

Pesquisas comprovam que cínicos vão ficar dementes quando velhos!

Desta vez a culpa é da Olivia, foi ela quem veio me cutucar a respeito de uma notícia, que eu não tinha lido. E também, mesmo que tivesse, não teria achado nada, mas ela insistiu. Um escândalo, diz ela: pesquisas comprovam que cínicos vão ficar dementes quando velhos!

Querida Olivia,

Jornais estão cheios de notícias imbecis desse quilate. Não podemos gastar fogo com um artigo anônimo, num jornaleco do qual não se pode esperar muito mais que isso, a respeito de uma “pesquisa” que não se preocupa em citar nenhuma referência e que visa só a épater les imbéciles [variante do princípio “ele só parece inteligente porque nos trata como burros”]. O artigo alimenta-se da nossa necessidade de que as coisas tenham sentido, de que a demência que nos afeta seja explicável – melhor ainda se a explicação implica que é uma punição dos pecadores (como a Aids dos homossexuais). Lacan chama isso de “jouis sens”, gozo-sentido. Bom… Já vi, você vai reclamar que não goza assim tão baixo.

Vou lhe responder que não é de bom tom para um psicanalista julgar da qualidade do gozo dos outros.  Mas o que fazer para combater uma coisa da qual não se consegue escapar? Gosto de pensar que a clínica psicanalítica nos oferece estratégias, uma das quais se chama “ir a favor do sintoma”. Nisso não sou nem um pouco original: Flaubert, para combater o desgaste da palavra, resolveu estabelecer um dicionário das ideias feitas, um monumento ao lugar comum, como os pagodes indianos dourados com bosta de vaca, diz ele, uma homenagem tão total que ninguém ousaria mais abrir a boca de vergonha de usar uma palavra dessas.

Poderia se fazer um dicionário das “causas” das doenças classificadas pelo CID. Comer tomate… é cancerígeno, segundo a pesquisa x. Fazer xixi mais de duas vezes é… Mas estou me afastando do assunto.

Quando a demência se instala  é insano procurar significações anteriores, fazer leitura retroativa: lembro-me de uma velha amiga se queixando da evolução demencial da mãe. Dizia ela: “a demência da minha mãe a deixou malvada, mas acho que ela foi sempre malvada com a gente, a doença só acentua um traço de caráter, você não acha?”.  Não acho nada: você tem uma mãe demente, cujo cérebro está virando mingau e a demência dela te permite alimentar sua autocomiseração narcísica.  Poderia ter respondido isso. Não respondi, parei na palavra “mingau”. Mas estou servindo esse exemplo cru só para apresentar minha conclusão:  nossas “explicações” sempre se alimentam de nossos fantasmas.

Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana