Por Claudia Riolfi
Mãezar – a oportunidade de acompanhar o desabrochar dos filhos
1, Stewart Street, um apartamento de frente para o Thames, é onde escrevo. Escolhi-o pela internet e me surpreendi muito favoravelmente ao chegar. O sol nasce na janela da sala, tingindo de azul o vidro da varanda enquanto as gaivotas saúdam o amanhecer. Há calçadas ladeando o rio para a minha direita, convidando para uma pequena caminhada. Passando por jardins, em dez minutos alcanço uma praia de rio. As rosas e os brincos de princesa imperam ao longo do caminho.
Vim para cá mãezar. Ofertei-me a oportunidade de acompanhar o desabrochar dos filhos. Acabei acompanhando o aprimorar do olhar.
Laura, 19, passou da plateia para o estúdio. Sustentou um curso de oito horas por dia, durante quatro semanas, para obter um Filmmaking Certificate na London Film Academy. Eu vi seu roteiro ser escolhido, entre ingleses, gregos, escoceses, irlandeses e espanhóis, para ser transformado em filme. De tão imersa no “fazer”, ela deixou de se dar conta dos elogios que vem recebendo. Tomei como minha a missão de recortá-los no entremeio de seus relatos entusiasmados.
Domenico, 13, passou de menino para rapaz. Chegou com sapatos número 38 e, agora, calça número 40. Temos passado dia após dia em uma diversão cujo prazer extrapola os limites do evento “viagem de férias”. Encontramos uma pérola: o livro London Adventure Walks for families. Tales of a city, de Becky Jones e Clare Lewis. Escrito para famílias inglesas, o livro propõe vinte e cinco percursos de caminhadas temáticas para que se conheça a capital britânica a pé.
Seguindo as instruções, caminhamos setenta quilômetros ao ar livre, concluindo uma dúzia de percursos temáticos. Colocamos os pés para levar o cérebro para estudar história (O que os romanos fizeram por Londres – 4.0 km; e Reis e rainhas: os palácios – 4.0 km); política (Espiões e a guerra fria – 6.4 km; e Henrique VIII na corte de Hampton – 8.0 km); literatura (Charles Dickens e a infância vitoriana – 6.4 km; e A cidade de Shakespeare – 3.2 km); medicina (Florence Nightingale e a História da Medicina – 6.4 km) e geografia (Tempo e espaço em Greenwich – 8.0 km). Utilizamos as pernas para levar os ouvidos para escutar pássaros e os olhos para ver plantas (Florestas selvagens em Dulwich – 5.6 km; Remando pelo Thames – 7.0 km; 101 dálmatas no Regent Park – 4.8 km; e Canto dos pássaros em Rainham – 5.6 km).
Quando tudo estava terminado, fiz a ele a pergunta que, muito provavelmente, eu queria responder: – Você acha que ter tido um livro de roteiros para nortear nossos dias foi indiferente, tirou nossa liberdade ao guiar o olhar, ou, por ter guiado o olhar, nos libertou? Respondeu sem piscar os olhos: – Se eu estivesse sem você para mãezar, poderia ter tirado a liberdade, com você, nos libertou.
Era uma tese que pedia especificações. Foram dadas. Para Domenico, sozinho, o guia funcionaria como o olhar não filtrado do outro sobre a cidade. Segui-lo equivaleria a obedecer imperativos de modo acéfalo. Mãezado, o fechamento do guia abria. Por seguirmos as instruções, não nos dispersávamos. Por conversamos entre nós, sempre encontrávamos suas brechas, customizando-as.
No percurso Shakespeare, por exemplo, tivemos de inventar modos de persuadir os ingleses a nos vender tickets esgotados, descobrir como garimpar livros raros, aprender a persuadir o outro para abrir exceções nos horários e nos ambientes para visitar. Nos romanos, trouxemos na manga inúmeras viagens anteriores para vislumbrar que segredos da cidade as autoras teriam deixado escapar. Fizemos muitas perguntas para estranhos e infinitas pesquisas complementares.
– O bom do saber é que quanto mais a gente acrescenta, mais ele se mostra furado, concluiu – O olhar singular recorta um mundo, deu o golpe de misericórdia.
Claudia Riolfi é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo. Cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Psicanalista, é Diretora Geral do IPLA.