Por Alain Mouzat
A liberação dos beagles relança um assunto: o que pode o homem fazer com os animais?
Já no paraíso Deus deu poder ao homem sobre os animais. Ele lhe deu domínio sobre os bichos e pediu a ele que os nomeasse; portanto, o homem se tornou responsável moral pelos bichos, seu padrinho no mundo (Gênese 1-26; 2-20).
Essa é a aliança do homem e da natureza: a responsabilidade moral do lado do homem, a dependência do lado do bicho. Junto com Noé e sua família, Deus salvou um casal de cada bicho. Aqui se coloca sempre um problema: se Deus inundando a terra sacrificou os animais é porque os considerou solidários na culpa… Outro problema ainda não resolvido: e os peixes? Por que foram protegidos?
Bom, entramos em seara complicada, que mostra que nossa relação com os animais não depende de bom senso, mas de uma relação imaginária com ele. Por que a proteção da natureza implica certos bichos e não outros? Mamíferos vertebrados terão por certo nossa preferência. Da mesma forma que Deus no dilúvio, os parques naturais se propõem a reintroduzir o lobo na Europa, mas não os mosquitos na Baía de Guanabara. Nosso sonho de ver o restabelecimento de uma cobertura vegetal no litoral brasileiro, não passa exatamente por um retorno à vida selvagem.
A sacralização da vida, que visa a afirmar a indiferenciação, que qualquer vida se vale, encontra aqui rapidamente seu limite: se aceitamos que a vida de um cachorro possa valer a de um homem, eu serei obrigado a aceitar que qualquer bactéria tem também todo o direito de viver.
O que me permite considerar tal bicho mais do que outro? Semelhança: o olhar. Sem dúvida, a capacidade de captar o olhar, a voz (aquela que falta ao cachorro e que sobra para as baleias). Não ouso falar dos outros objetos pulsionais, mas não custa lembrar como os dejetos de cachorro criaram celeuma na França até a cidade de Paris se equipar de pequenas motos sugadoras de coco de cachorro.
Não tem jeito, nossa relação com os bichos está presa à nossa condição humana, isto é, ela é mediada também pelos nossos afetos: o bicho nos toca. E não dá para explicar exatamente porque gosto mais de cachorro do que de gato. Eu tenho de reconhecer essa relação entre seres sensíveis.
Posto isso, temos de tirar as consequências. A legislação, por exemplo o código napoleônico, que põe os animais no rol dos “bens móveis”, reflete uma sociedade rural que pensava em cabeça de gado, par de cavalos para puxar a carroça etc. Era uma relação de exploração, concreta e material. Hoje se desmaterializou o bicho, virou ou consumo de carne ou pet. Há poucos espaços de exploração direta (quem anda de trenó se sente cúmplice dos cães, da mesma forma que quem caça – e talvez até da lebre). Acho ainda esquisito denunciar a produção de frango em granja em nome do maltrato aos bichos: deveria se denunciar atentado contra a saúde humana! Mas fica mais difícil, afinal, cada um é livre para comer o que quer. Gosto de foie gras, mas nem sempre é possível garantir que seja de criação artesanal, que respeitou a sensibilidade do pato!
O reconhecimento legal do estatuto de ser vivo sensível para o animal parece hoje uma necessária evidência a registrar. Não será tanto um avanço, já que as questões estão bem mais adiantadas e exigem outra coisa que a lei para serem resolvidas. Não vejo como poder estatuar sobre a segregação às baratas.
Se tentamos dar corpo ao nosso imaginário, integrando a relação afetiva ao laço social, reconhecendo a qualidade sensível de nossa relação com o animal, não se pode perder de vista o valor imaginário dessa relação. Senão, somos capaz de concluir que, já que o macaco bonobo é 98,7% igual ao homem, é possível fundar um laço social na base da etologia.
O homem é antinatural, diz Luc Ferry citando Rousseau: ele não vai pautar seu ser numa natureza qualquer, nem de homem, nem de mulher. Por isso, quem faz macacadas e cachorradas é o homem.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana