Por Italo Venturelli
Lisbella tem cabelos claros, longos e escorridos, não usa maquiagem, nem destaca sua feminilidade. Com 25 anos, chegou acompanhada da mãe e de uma “malinha” cheia de exames e documentos. Dos supostos diagnósticos do tipo médico, nenhum foi confirmado. Fui retirando todas as medicações, apesar do desespero da mãe.
O lugar da psicanálise, na medicina, é um trabalho de Jacques Lacan datado de 1966, fruto de um debate junto a colegas médicos, ao qual ele foi convidado no Collège de Médecine, na Salpetrière, em Paris. Na abertura, ele destaca duas balizas no tocante ao trabalho clínico, primeiramente a demanda do doente, em segundo lugar, o gozo do corpo. O caso que se segue é um exemplo de como um neurocirurgião autorizou-se a tratar a partir da escuta psicanalítica, não respondendo a demanda, por mais exames e medicação e indo além do diagnóstico. Ele incluiu a subjetividade da paciente e sua paradoxal satisfação nos seus sintomas tidos como epiléticos.
Lisbella tem cabelos claros, longos e escorridos, não usa maquiagem, nem destaca sua feminilidade. Com 25 anos, chegou ao meu consultório de neurocirurgião acompanhada da mãe e de uma “malinha” cheia de exames e documentos. Tinha vários diagnósticos: epilepsia, esquizofrenia, transtorno bipolar, dificuldade no aprendizado e dislexia.
Tão logo averiguei os exames eencontreiapenas um quadro clínico de hipotireoidismo, nada mais. Ela estava obesa, com hirsutismo, e tinha os cabelos quebradiços. Às minhas perguntas, ela respondia devagar, mas de forma coerente. Diagnósticos médicos descartados, resolvi tratar a moça coma arte da psicanálise.
A paciente, de início, apresentou-se completamente dopada devido ao uso de um verdadeiro coquetel de medicações do tipo: Risperidona, Carbamazepina, Gardenal e Rivotril. Não era de se estranhar que ela vinha trazida pela mãe, “para o controle de crises epilépticas”, como dizia a genitora, que não parava de se queixar da filha. A mãe descrevia a menina como agressiva, gulosa, com dificuldades de raciocínio lógico e sem condições de gerenciar sua vida. Segundo ela, nem banho a filha tomava todos os dias. Os seus desmaios diários obrigavam a menina a parar de estudar. Cursou até o sexto ano do ensino fundamental. Sair de casa? Nem pensar!
Na entrevista de anamnese, contou que tinha um irmão mais novo que também desmaiava. Ao que perguntei: “Ele desmaia como você? ” Ela respondeu: “Sim, igualzinho. ” “E porque ele não usa remédios? ”, indaguei. “Ele é homem e minha mãe diz que ele é mais calmo e que não precisa. ” Na posição de gata borralheira, ela limpava a casa e faziao serviço doméstico. Sedada durante o dia todo, sua posição era completamente passiva diante de sua vida.
Um dia, contou-mede seu desejo de fazer doces, principalmente brigadeiros: “Gosto de fazer doces, tipo brigadeiro, mas não sei fazer direito. Minha mãe faz, mas fica muito seco. Gostaria de visitar a fábrica de chocolates Garoto.” Privilegiando a dimensão libidinizante do significante, pontuei que ela estava querendo sair da secura afetiva materna e conhecer a doçura de um garoto. Ela riu muito e ficou rubra.
Dos supostos diagnósticos do tipo médico, nenhum foi confirmado. Fui retirando todas as medicações, apesar do desespero da mãe. Os exames que trazia eram de péssima qualidade. Apesar disso, cada médico que a mãe consultava para tratar da filha tinha acrescido mais um anticonvulsivante. Em realidade, ela apresentava conversão psicomotora e não convulsões. Apostei no diagnóstico de uma neurose histérica, com traços obsessivos, expressos na ordem ritualística, limpeza e organização.
A paciente aderiu rapidamente ao tratamento psicanalítico. Não faltou a nenhuma sessão. De início, era um serviçal, queria organizar a sala de espera, como fazia em sua própria casa. Com o tempo foi assumindo posturas importantes a cada sessão. Começou a falar de suas questões e desejos. Falava com mais desenvoltura. Mudou de aparência. Passou a usar pulseiras, brincos e roupas mais alegres.Sempre que perguntada sobre o que queria ou o que gostaria de fazer, ela respondia: “gosto de fazer doces”. Simples assim. De preferência, brigadeiros. Queria vender doces e ter seu dinheiro. Passou a dar importância a seu retorno aos estudos. Atualmente, está fazendo cursinho pré-vestibular, quer prestar faculdade de nutrição.
O estado deplorável no qual se encontrava Lisbella no início do tratamento era devido ao fato de que os médicos não respeitavam seus sintomas psíquicos. Tratavam-nos como se fossem de caráter biológico. No entanto, sua questão psíquica maior era sua relação com uma mãe fálica e tirana. A própria paciente tinha se colocado na posição de objeto da mãe. Por várias vezes, a mãe quis retirá-la do atendimento, pois a filha passou a não atender mais a seus mandos e desmandos. Começou a sair de casa, a ter convívio com os amigos e a ir a pequenas festas, enfim, a ter independência. A mãe não gostou. Foi necessária a intervenção de um tio que era padre, autoridade na família, para ela dar continuidadeao tratamento.
Hoje, Lisbella não cita a mãe como sua dona. Aprendeu a fazer bolos e brigadeiros. Vende os docinhos, inclusive em minha sala de espera e paga as sessões com seu trabalho.
Italo Venturelli é neurocirurgião, psicanalista e diretor técnico do Hospital Bom Pastor em Varginha, MG.