Linguagem, cultura, informação: entre a biblioteca e a Internet 10/03/2016

Por Beth Brait

O olhar irônico de Umberto Eco revela uma constante reflexão a respeito da cultura, da sociedade, das linguagens que as caracterizam, dos valores que as dominam 

Quando morre um homem como Umberto Eco (05/01/1932 – 19/02/ 2016), é impossível não pensar nas formas por ele vivenciadas de construção e transmissão de saberes ao longo de seus privilegiados 84 anos. E não é somente porque ele escreveu sete livros de ficção, mais de vinte de não ficção, ao menos três para crianças e uma quantidade imensa de artigos e ensaios. A quantidade é tão expressiva quanto as fotos que mostram sua imensa biblioteca “caseira” em Milão, as investidas contra as redes sociais – “que dão voz a uma legião de imbecis” -, e a internet – “que pode tomar o lugar do mau jornalismo”. O que impressiona, de fato, nesse trânsito por ele estabelecido entre detentores e transmissores de saberes/informação/valores – livro, Internet, jornalismo -, é o agudo e irônico olhar que perpassa cada um de seus escritos, cada uma de suas entrevistas, incidindo sobre passado e presente, revelando uma constante reflexão a respeito da cultura, da sociedade, das linguagens que as caracterizam, dos valores (ausência de…) que as dominam. No centro está sempre o ser humano, suas criações, suas grandezas, suas falcatruas, as armadilhas dos diferentes poderes, as artes, as técnicas, as complexas relações entre tudo isso. Dessa vivacidade reflexiva, destaco dois exemplos, que falam por si.

O primeiro, bastante anedótico, mas profundamente coerente com sua personalidade, aconteceu em 1992-1993, quando de seu curso no Collège de France. Ao terminar sua aula inaugural, La quête d’une langue parfaite dans l’histoire de la culture européenne, [A busca de uma língua perfeita na história da cultura européia] proferida no dia 2 de outubro de 1992, Eco foi muito aplaudido. Na sessão seguinte, antes de dar início a sua fala, agradeceu os aplausos recebidos na aula anterior, mas lembrou que esse tipo de manifestação era mais adequada aos espetáculos do Moulin Rouge…

E o segundo, uma de suas obras menos lidas, mas talvez uma das mais significativas no que se refere a mobilizar passado/presente, memória individual e coletiva, arte e realidade, política e meios de comunicação. Trata-se de A misteriosa chama da rainha Loana: romance ilustrado (2004), texto híbrido em que a produção de sentidos se dá na confluência entre a narrativa verbal e a visual, esta última formada por uma profusão de capas de livros, revistas, partituras musicais, cartazes de filmes, caixas e latas, jornais ilustrados, cadernos e livros escolares, selos, páginas de jornal da época, estampando notícias sobre Mussolini, jornais clandestinos libertários, dentre muitos outros tipos de imagens. Essa estratégia recupera, pela via da literatura e de muitos outros meios de comunicação, certa memória que, sendo pessoal, é também a memória do fascismo na Itália. 

As frases que dão início à narrativa são: “E o senhor, como se chama?”/“Espere, está na ponta da língua”. A partir daí, começa a história do protagonista (ou seria da Itália?), que acorda um determinado dia e descobre que perdeu a memória. Mas não toda: perdeu a memória ligada à sua identidade civil, às pessoas próximas, à sua história pessoal. Restou-lhe, entretanto, a uma memória viva, atuante, construída pelas leituras feitas durante essa vida da qual ele não consegue se lembrar. E é a essa ponta exposta da língua, que esconde muito mais do que mostra, que o protagonista vai se agarrar para retornar a espaços de sua infância, de sua adolescência para, nos sótãos, corredores, prateleiras, vãos e desvão, socorrer-se da linguagem, caso dos livros, discos, publicidades, revistas, etc., para moldar peças de um quebra-cabeças e, com elas, re-significar sua existência.

Beth Brait é crítica e ensaísta, linguista, professora e pesquisadora  ( PUC-SP/USP/CNPq)

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