Por Maria da Glória Vianna
Tanto construir quanto comentar um caso é fazer uma compressão de fragmentos do real com os quais nos deparamos a cada dia
Construir um caso não é tarefa fácil, é uma atividade que exige do analista, como se diz no mantra, “sustentar seu ato duro”. Pela escrita, o analista busca dar conta da dureza de seu ato a partir dos fragmentos de sessão que escolhe contar, em que tanto ele quanto seu paciente foram confrontados com o real.
O ponto de partida do trabalho do psicanalista é sempre o caso. Viganò, psicanalista da Escola Lacaniana da Itália, retoma a etimologia da palavra caso para nos mostrar que ela vem do termo latino que significa cadere – cair ou ir para fora de uma regulamentação simbólica. Ela propõe que construir um caso é ir ao encontro do real – àquilo que não se pode dizer. Assim, tanto construir quanto comentar um caso é fazer uma compressão de fragmentos do real com os quais nos deparamos a cada dia.
Comentar um caso redigido por terceiros é um exercício de muita responsabilidade e sobriedade. Um aspecto essencial para quem vai comentar um caso é perguntar-se, antes de tudo, se há um caso a ser comentado. Não se trata de, aleatoriamente, julgar os manejos feitos por outro colega, mas, sim, de tentar ouvi-lo nos pontos de “empacamento clínico” ou de dúvidas com relação à condução do tratamento.
Comentar um caso clínico é um exercício de dar vida a um escrito. De antemão, aquele que comenta um caso previamente estabelecido por um colega entende que não se trata de falar em um “après coup” o que deveria ter sido, mas não foi. Assim, quando um analista comenta um caso que lhe foi confiado, não é o momento de com um tom deôntico (“aqui você deveria… aqui você poderia ter colocado… etc.”), escorregar para o campo da moral.
Para honrar o esforço de quem escreveu, é preciso tentar recuperar a virulência de uma fala que, tendo sido dada por concluída, já não é mais. Isso sem ceder à tentação dos verbos no condicional (“se você tivesse prestado atenção no elemento x”; “caso você tivesse se dado conta de y”.). Ler no condicional é tentar resgatar uma escuta que simplesmente não se deu, pois o analista responsável pelo caso, no momento em que fez uma intervenção, avaliou que seria isso e não aquilo o que lhe cabia fazer, que o ponto a ser destacado era H e não Z.
Lembremos que todo o esforço de Lacan, em seu último ensino, consistiu em encontrar modos de tratar o que escapa à interpretação analítica tradicional. Então, o sintoma na cura analítica faz-se processo de escrita e visa a escrever alguma coisa do gozo do sujeito. A aposta de Lacan é que os sulcos abertos pela escrita, quaisquer que sejam, não cessam de não escrever o gozo do sujeito. Aí, então, para esse sujeito, para quem a escrita fracassou, é necessário o trabalho da letra e sobre a letra.
Ler um caso para fazer um comentário, mais do que ressaltar as áreas de sombra do texto, é fazer ressoar uma fala de algo que não existe; é enganchar essa fala num aqui e num agora, em outro tempo do dizer. Um analista que comenta o caso do colega escuta não apenas o que claudica no discurso do paciente, mas o que, daquele relato lido, ressoou em si a partir da sua clínica e de sua escuta.
Para montar a leitura de um comentário, destaco algumas perguntas que podem ser feitas a partir do relato de um caso: 1) está havendo análise?; 2) quais manejos mais utilizados pelo analista e quais as suas finalidades?; 3) qual o diagnóstico e prognóstico do tratamento?; 4) que efeitos relatados pelo analista mostram um avanço ou um “empacamento” na direção da cura?
Essas questões podem convocar o redator inicial do caso para além do que foi inicialmente registrado. A maior lição que a leitura de um caso clínico pode nos trazer é, justamente, a possibilidade de depreender algo que vai mais além do que estava escrito e, a partir desse exercício clínico, construir princípios para a própria prática como psicanalista.
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.