Por Carolina Jesus Pereira
Quem não desenvolve o hábito de fazer observações diligentes, de se demorar em análises, de se questionar e tentar encaixar as peças que tem à disposição corre o risco de seguir por caminhos clandestinos ao tentar construir conclusões
“Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou” é uma das frases mais populares de Lacan. Ao mesmo tempo em que remete à fragmentação dos sujeitos e de seus inconscientes, também contempla a ideia de que a construção de sentidos passa por um caminho incerto e cheio de acidentes.
“Você pode saber o que escreveu, mas nunca o que o outro leu” seria uma máxima apropriada para os dias atuais. Um costume que se tornou mais conhecido depois que grande parte do conteúdo jornalístico migrara para mídias digitais é o fato de que muitas pessoas entendem o que querem daquilo que leem, sem obrigatoriamente estabelecer vínculos com o que estava escrito. Como compreender os extremos dessa desagregação?
No início de 2015, um acontecimento curioso foi noticiado na Irlanda: o país legalizou, acidentalmente, o porte de ecstasy, cogumelos alucinógenos e outras drogas psicoativas. A proibição dessas drogas estava registrada em uma lei que outorgava, a um setor administrativo do governo, poderes que deveriam ser somente do legislativo. Com pressa para corrigir essa falha, o tribunal tornou a lei inconstitucional, não restando quaisquer outras que tratassem da proibição dessas drogas.
O automatismo da ação que gerou a indesejada consequência nos leva a questionar esse modo de ler em que o olhar se apega a fragmentos, desconsiderando a integração entre as partes e os efeitos do todo. Quando o leitor se cola apenas a pedaços daquilo que lê, produz sentidos nos quais não existe lógica. Ainda que no episódio irlandês o caso tenha sido resolvido rapidamente, com a convocação apressada de uma sessão de emergência para regulamentar a situação, cabe pensar em maneiras de se evitar imprevistos como esse.
Um ponto a ser considerado é que não se trata de pensar somente na leitura de textos, mas em um sentido mais amplo de leitura, na interpretação e associação de hipóteses, fatos e consequências. Acreditamos que um leitor que tira conclusões apressadas e incoerentes a partir de textos tenderá a fazer o mesmo com fatos cotidianos, desconsiderando pistas e fazendo um cálculo errado de consequências. O que está em jogo, nesse caso, é a posição subjetiva do leitor, e não propriamente suas habilidades de leitura.
Em uma entrevista acerca da redução do hábito da leitura entre crianças, o escritor moçambicano Mia Couto respondeu que precisávamos entender que elas “estão deixando de ler os livros porque estão deixando de ler o mundo, de ser capazes de ler os outros, de ler a vida”. Quem não desenvolve o hábito de fazer observações diligentes, de se demorar em análises, de se questionar e tentar encaixar as peças que tem à disposição corre o risco de seguir por caminhos clandestinos ao tentar construir conclusões.
Seja em contexto escolar, legislativo ou nos mais variados âmbitos da vida privada, estamos todos sujeitos a cometer erros, “comer bola”, deixar evidências passarem despercebidas. Se o risco é intrínseco até mesmo quando tentamos nos responsabilizar pelo processo de construção de sentidos, por que não nos implicamos, de uma vez por todas, nessa tarefa? Se existe um jeito de ler de maneira eficiente, ele certamente passa por aí.
Carolina de Jesus Pereira é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, no momento, está cursando mestrado.