Por Marcelo Veras
Se o querer é incondicional, o desejo pode ser realizado por partes, deixando sempre um gosto de quero mais
Existe uma diferença importante entre querer e desejar. Na maioria das vezes o querer se associa à frustração e ao capricho, enquanto o desejo se associa ao amor – mesmo que não saibamos o que isso quer dizer realmente – e à vida. Em diversas situações querer e desejar estão em franca oposição, dividindo o sujeito em duas partes completamente distintas. Ambos envolvem a relação do sujeito com o outro, o que muda é o modo como essa relação se estrutura. O querer supõe sempre uma demanda ao outro, uma súplica, uma outorga ao outro do direito de dar ou negar o que se pede. Esse outro pode ser tão próximo como a vizinha do lado ou tão longe como o próprio Deus. Deus, por sinal, está sempre ocupado demais para tratar de nossas misérias individuais, ainda assim vivemos lhe pedindo coisas (será que se escreve “Lhe” pedindo coisas?, hum, não sei). Ouço muito no consultório alguém contar como tudo vem dando errado e concluir que Deus não está olhando para ele. Sempre respondo que, ou ele é um egocêntrico interestelar, ou ele deve reconhecer que não é tão importante assim, que Deus tem tarefas mais complexas do que se ocupar da traição do marido ou da perda do emprego. Já desejar é algo mais libertador, o verdadeiro desejo prescinde de sua realização, até mesmo porque, se fosse possível alcançar aquilo que desejamos, correríamos o risco de matar o desejo. O desejo tem algo de incondicional porque na verdade ele não precisa muito da aceitação do outro, é possível amar o outro à revelia. Se o querer é incondicional, o desejo pode ser realizado por partes, deixando sempre um gosto de quero mais. É uma falta à ser que lança uma promessa para o futuro, mais ou menos como no dia em que nos aprontamos para uma saída romântica mais tarde.
Toda essa questão de demanda e desejo, contudo, está aqui para poder falar do modo como o par desejo/demanda organiza a espera de um filho por alguns casais no mundo atual. O mistério da reprodução sempre existiu, tradições milenares sempre foram consagradas à fecundação e filiação. Da deusa grega Maia Maiestas aos chás e simpatias de nossas tias, o homem sempre buscou no místico o mistério da concepção, isso sem falar na concepção da própria Virgem Maria, que realiza o sonho de todos os adolescentes de ter uma mãe imaculada. Tudo muda a partir do discurso da ciência.
A ciência, após escantear o Arcanjo Gabriel, cada vez mais, tem anunciado aos casais que querem ter filhos o slogan yes you can. Essa possibilidade muitas vezes se transforma em tortura. O declínio das velhas crenças e simpatias não eliminaram a fé no Outro. O apelo ao Outro é o dispositivo universal para dar conta da insensatez do real corporal. Nossos corpos traem permanentemente nossos desejos, e aqui novamente a tensão entre desejo e demanda se instala. Assim, Santa Sara, virgem negra da fecundidade, também foi demitida e no lugar colocaram as novas tecnologias e a sedução dos resultados estatísticos. Nem sempre nossos corpos respondem aos nossos desejos, mas há sempre probabilidades. Mais um tratamento, mais uma bateria de injeções, e de tratamento em tratamento o desejo de ter um filho se transforma em desespero. Em inúmeros casos, a relação sexual tem que ser cronometrada, a posição das pernas monitorada, um ritual que necessariamente tem que acontecer naquele dia, naquela posição, pouco importando se nesse dia pintou um clima ou se o casal está brigado. O importante é que naquele dia, mesmo sem tesão nenhum, eles farão a relação sexual existir em prol da demanda imperativa. Cada vez mais escuto histórias de casais que, à força de terem que transar no dia e na posição específica, desenvolvem uma verdadeira pane do desejo, restando para eles um sexo automático e repetitivo. O filho pode até vir, mas as sequelas desse kamasutra de hora marcada pode ser devastador. Em nome da família, o romance e a sedução vão embora.
Não sou muito de dar conselhos, mas com certeza se os casais são capazes de gastar verdadeiras fortunas em tratamentos de fecundação, sugiro que eles incluam no orçamento os custos de um ou dois dias de folga nos períodos férteis, esqueçam um pouco do relógio do trabalho e, realmente, namorem nesse dia. Assistam um filme, bebam um vinho, vão para uma pousada, tudo isso não custa mais do que um pequeno percentual do que se gasta em um processo de fertilização assistida. Em suma não levem o médico para a cama de vocês.
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise
Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 167 – 22 de setembro de 2016
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