Jürgen Habermas e as “fantasias desejantes” dos pais do futuro 22/09/2016

Por Dorothee Rüdiger

Esse texto foi apresentado nesta semana, 20/9/16, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curso semanal, que trabalha atualmente as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.

“Filhos…  Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos, como sabê-lo?”
Vinícius de Moraes

Como transmite jocosamente o poeta Vinícius de Moraes, ter um filho é enfrentar uma incógnita. Como ele vai ser: homem ou mulher, bonito ou feioso, inteligente, talentoso ou não?

Ao menos hipoteticamente, num futuro bem próximo, os pais poderão escolher, quando optarem para realizar uma inseminação artificial, dentre o cardápio dos genes do filho aqueles que melhor se enquadram em suas expectativas. Poderão encomendar uma melhorada nos genes que determinam certas qualidades do rebento. Mas, o que acontecerá, quando esse filho assim concebido, não pela natureza, mas pelo designer genético, chegar à adolescência?  Eis a questão que Jürgen Habermas coloca para a reflexão em sua obra Die Zukunft der menschlichen Natur: auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? –  O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? O texto é uma da obras-base da crítica que Luc Ferry dirige aos bioconservadores em seu livro  La révolution transhumaniste: comment la tecnomédicine et la uberisation vont bouleverser nos viés – A revolução transhumanista: como a tecnomedicina e a uberização vão desarranjar nossas vidas. Resumimos, em seguida, as teses de Habermas e a críticas formuladas por Ferry para depois lançar a tentativa de introduzir uma visão psicanalítica no debate. 

Primeira tese: A eugenia liberal restringe a autonomia dos filhos e gera um novo paternalismo

Para Jürgen Habermas, tido como um dos maiores filósofos contemporâneos, a eugenia liberal, ou seja, a possibilidade de escolha de determinadas qualidades genéticas do filho pelos pais com o uso da manipulação de genes no embrião, é questão de um novo paternalismo. Mais do que uma restrição da liberdade do filho, o desenho de seus talentos e qualidades biológicas representa uma restrição de sua autonomia. Para Habermas o filho não é cerceado somente em seu direito de viver sem interferência dos pais, mas é impedido de exercer determinadas escolhas que realizaria não fosse geneticamente melhorado. Habermas vê na manipulação genética uma anulação do postulado liberal que garante à criança a autodeterminação.  Podemos dizer com Habermas, que a eugenia liberal é, portanto, antiliberal. Infringe o imperativo kantiano, base do direito moderno, de nunca tratar o outro exclusivamente como um meio, mas como um fim em si.  De acordo com esse imperativo, o filho não deve ser um instrumento da vontade dos pais, mas ter o direito de escolher seus próprios projetos.

Segunda tese: Os filhos, ao invés de lidar com as contingências, terão que cumprir as expectativas paternas aumentadas

Enquanto a criança é criança, não vai perceber a diferença entre ser geneticamente arquitetada ou não. A crise chega na adolescência, num momento em que não somente os ânimos, como também os interesses entre os pais e filhos entram em rota de colisão. Por um lado, há a vontade dos pais que querem ver seu projeto de filho realizado, por outro lado, a vontade do adolescente de fazer o corpo o seu, de “ter um corpo” . Para Habermas existe uma diferença entre conviver com um corpo natural ou com um corpo que foi projetado com caraterísticas que correspondem à vontade dos pais. É mais fácil, diz Habermas, lidar com as contingências do corpo natural (porque é como é, e basta) do que com a vontade paterna e suas expectativas aumentadas.

Geneticamente melhorado ou não, nenhum filho foge das expectativas dos pais e de suas “fantasias desejantes”.  Mas, como argumenta Habermas, os adolescentes comuns podem colocar essas fantasias em questão discutindo com os pais seus próprias vontades e desejos. Há conversa. Os geneticamente manipulados precisam cumprir seu destino pelo qual foram programados. Não há conversa. Há cumprimento de um plano.

Terceira tese:  a liberdade é experimentada no contexto do acaso

Habermas alega que ser fruto do acaso gera uma identidade, ser um produto da genética gera outra. “A própria liberdade é experimentada no contexto de algo sobre o que não tenho alcance,”  diz.  O acaso não posso criticar. Lido com ele como posso. Se sou um produto, sou  sempre observado por alguém cujos desejos devo cumprir.  Nesse caso, não é possível criar com minha experiência de vida algo inédito, porque sempre haverá algo já programado por alguém.  

Quarta tese: contra a predestinação genética não há saída pela conversa

Um adolescente comum também pode sofrer sob o poder dos pais e desenvolver uma fixação neurótica às tradições da família. Nesse caso, ele pode fazer uma psicanálise em busca de escolhas próprias e responsabilidades correspondentes. Entre adolescentes comuns e seus pais, os problemas se resolvem com a conversa sobre o que fazer na vida.  Já a manipulação genética gera uma fixação biológica. Dentro da ótica de Habermas,  contra a predestinação genética não há saída pela conversa (ou, acrescentamos, pela psicanalise). Por isso, só se pode admitir a manipulação genética para fins terapêuticos, porque nesse caso pode se presumir que o adolescente futuramente não vai reclamar seu direito de autodeterminação.

Quinta tese: O novo paternalismo aumenta a dominação numa sociedade marcada pela assimetria 

Para Jürgen Habermas estamos vivendo numa sociedade marcada pela assimetria, pelo que chama de “violência estrutural”.  Atualmente, os micro poderes, a  dominação social e exploração econômica  nela existentes podem ser revistas pelo constante debate político e social. Diferentemente ocorreria com o poder dos pais de filhos geneticamente manipulados que voltariam, agora mancomunados com os designers genéticos,  a exercer um paternalismo sui generis. Poderia, por outro lado,  no Estado Democrático de Direito, haver remédios jurídicos: novas garantias, listas de intervenções autorizadas, normas jurídicas que exigem sua avaliação criteriosa. Mas, Habermas é cético em relação a essas medidas. Prefere enxergar no novo paternalismo um autoritarismo assombroso.

Como responder a Jürgen Habermas?  Luc Ferry oferece,  em um dos capítulos  de seu livro já citado, quatro respostas  a Jürgen Habermas e sua crítica ao transhumanismo.

Primeira antítese: Somos todos manipulados

Em primeiro lugar, diz Ferry, a suposição da existência de um “supermercado para escolher  qualidades de nossos filhos” é meramente hipotética. Não dá para pressupor,  que um dia se possa programar talentos por artes, ciência ou esportes, por exemplo. O transhumanismo, de fato, só consegue aumentar as capacidades genéticas não especializadas.  Por outro lado, Luc Ferry não vê, porque a predestinação do filho por via da herança social, linguística, moral e cultural, enfim, via educação, seja menos grave que aquela  empreendida por manipulação genética.  Na sociedade humana, a liberdade é sempre restrita.  Fazemos parte de um contexto histórico e não natural. Assim sendo, somos restritos ao uso da língua, da visão ética, da moral dos nossos pais. A natureza é muda, mas está sempre inserida num contexto histórico. Portanto, podemos concluir com Ferry, a natureza não é uma reserva da liberdade absoluta.

Segunda antítese: Somos sempre herdeiros involuntários da herança genética de nossos pais

Ferry questiona a hipótese de Habermas de acordo com a qual a natureza é mais “dura”, mais “muda”, “imutável” que a história e o meio social.  Nesse sentido, não escolher qualidades genéticas é também uma escolha, é a decisão de não decidir. Geneticamente melhorados  ou não, somos sempre herdeiros involuntários da herança genética de nossos pais.   Se adolescentes podem criticar escolhas, podem também criticar os pais por não terem escolhido nada no cardápio da eugenia liberal.  Não ter escolhido belos olhos (quando isso for possível), pode suscitar a revolta juvenil quando os belos olhos dos outros dão uma certa vantagem no jogo da conquista.

Terceira antítese: Contrapor eugenia terapêutica e eugenia não-terapêutica é criar um falso dilema

Para Ferry, a distinção entre a eugenia terapêutica e não terapêutica não procede, já que a finalidade do transhumanismo é justamente livrar a humanidade do sofrimento ligado à doença, idade, velhice e morte.  O diagnósticoantes da implantação de embriões não implica um uso instrumental do embrião e, portanto, não conflita com o imperativo kantiano de nunca tratar o outro como meio, mas como fim.  Pois um conjunto de células ainda não constituem um outro ser humano, como querem Habermas e a Igreja Católica que enxergam no embrião um “ser humano em potencial”.  Nesse sentido, evitar doenças genéticas e feiura pela manipulação genética e, portanto, a intervenção na natureza, estão no mesmo plano, ainda mais numa sociedade que já inventou a cirurgia plástica para o rejuvenescimento,  o Viagra para combater a impotência e  o Xenical para conseguir um corpo esbelto.

Quarta antítese:  Manipulados ou não, somos enclausurados no contexto histórico

Para Luc Ferry a tese de Jürgen Habermas de que a manipulação genética perturba a liberdade piorando a autoimagem que o filho passa ter de si como livre  confunde situação com determinação.  Todos nós somos enclausurados num contexto histórico e social. Nascemos em lugares diferentes, épocas diferentes, culturas diferentes.  É isso que nos faz gente. Se nossos pais escolheram ou não nosso destino no cardápio das qualidades genéticas, tem, no fundo, pouca importância, já que a cultura e não a natureza, podemos interpretar Ferry,   é para o ser humano imperiosa.

Psicanálise:  possíveis contribuições desde Sigmund Freud até Jacques Lacan

Se lermos atentamente a obra O mal-estar na cultura de Sigmund Freud, já citada em outra ocasião, constatamos, que nunca somos livres da convivência com a civilização e suas leis. Não há para Freud na natureza uma reserva de liberdade. Temos que nos virar como podemos com as escolhas já feitas por nossos pais e pela civilização em que vivemos. Geneticamente transformado ou não, nesse contexto, é dado a cada um fazer suas escolhas.  

Diante disso, não há a menor chance dos pais evitarem o questionamento ou até a revolta dos filhos adolescentes. Já em 1905, Freud lançou essa tese em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Os filhos passam na adolescência por um trabalho doloroso de ter que se desligar dos pais e superar os triângulos amorosos familiares com  suas fantasias incestuosas, sejam eles geneticamente melhorados ou não, podemos acrescentar.  Mais de 100 anos depois de Freud,  persiste uma façanha cultural do adolescente:  “o desligamento da autoridade paterna, pela qual se cria essa contradição entre a antiga e nova geração, tão importante para o progresso da civilização.”  Essa façanha  cultural juvenil independe da cultura e da  composição genética de cada um.

E para falar com Jacques Lacan, podemos dizer que todos nós somos manipulados o tempo todo. “Somos falados,”  diz Lacan na Conferência Joyce o Sintoma, no dia 16 de junho de 1975 no grande anfiteatro da Sorbonne como abertura do 5º Simpósio Internacional James Joyce. “Somos falados e, por causa disso, fazemos das contingências que nos pressionam algo de tramado. Sim, há uma trama – chamamos isso de nosso destino.”  O que fazer com essa trama? O que fazer, em outras palavras, com o que os pais e a sociedade reservaram para nós? 

Geneticamente melhorados ou não, continuamos seres de fala e, portanto, não somos presos ao destino que os outros projetaram para nós. Podemos, sim, como diz Lacan,  fazer dessas contingências algo mais:  um sinthoma, “que é o que há de singular em cada indivíduo”.   Diante disso, os pais tem pouca chance de se impor, ou,  como diz o poeta Vinícius de Moraes em seu Poema enjoadinho, aos pais resta “a aporrinhação”.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 167 – 22 de setembro de 2016

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