Jogando dados 25/06/2015

Por Marcelo Veras

Perde-se às vezes anos entre desespero e angústia ao invés de aprender a viver com os números que se tem

Nem sempre é fácil separar o que nas nossas vidas é impotência e o que é impossibilidade. Muito do sofrimento que nos chega aos consultórios surge precisamente quando alguém se encontra nesse pântano nebuloso que mescla esses dois territórios. Vou ousar mais, acredito que os humanos não são capazes de compreender o significado da palavra impossível. Ao menos não sem imediatamente criar um mecanismo mágico e religioso para negá-lo. Nossa condição de seres falantes nos torna capturados por um dispositivo de ficção permanente que é pura negação da palavra impossível. 

Ao falar, podemos criar unicórnios, voar pelos planetas, viver mil anos, encontrar Deus, ou simplesmente dizer “eu te amo”. E o que ocorre quando a realidade nos desperta do sonho da linguagem? Quando não podemos cavalgar o unicórnio, pousar em Saturno, perguntar a Deus o sentido da vida ou ter certeza do amor verdadeiro? É aí que ao invés de nos tranquilizarmos diante da impossibilidade assumimos para nós a culpabilidade de não ter chegado lá. Surge o sentimento de impotência que aparece, em um momento ou outro, em cem por cento das falas de nossos analisandos. Impotência em ser o melhor profissional, conseguir ter um filho, assumir a preferência sexual, escolher a mulher certa ou encontrar um homem solteiro depois dos trinta. 

Improviso aqui a partir dos dados de Mallarmé. Sempre gostei de pensar no jogo de dados como um exercício sobre o que é necessário e o que é contingente na vida. A vida eclode no turbilhonar dos dados. Que números cairão? 3 e 5? 6 e 6? A nossa vida que nos precede, ou seja, aquela pensada pelos que nos tiveram, já começa a ser criada a partir desse turbilhonar. Será menino ou menina? Será saudável? Será um artista quando crescer ou será um doutor? 

Quando os dados caem na mesa o resultado está lá: 4 e 1. Por que esse resultado? Por que não outro? E é impressionante como escutamos nossos pacientes sempre lamentando o fato de que o resultado não foi outro. Quando os dados caem 4 e 1 surge imediatamente o impossível. Mas é também aí que surge o desejo, desejo de outra coisa. A partir desse momento, é impossível que os dados sejam 3 e 6. Com a psicanálise aprendemos que o desejo é simplesmente desejo, e não “desejo de”. Desejar, verbo intransitivo – apropriando-nos do título de Mário de Andrade. Mas muito do que se lamenta não é o luto do impossível, mas a culpabilidade e impotência diante do resultado, uma vez que o vizinho conseguiu ou que saiu no jornal um experimento científico novo que sugere que é possível conseguir. 

De um modo renovado, sem fazer apelo à nenhuma entidade divina para nos amparar diante do impossível, os avanços tecnológicos perturbaram barreiras até então muito claras sobre o que é impossível. Você pode ter os seios que deseja, você pode ter o filho que deseja, você pode se curar de tal ou tal doença. A questão obviamente se abre para inúmeras situações distintas. 

Contudo, a questão não está nos benefícios que os avanços tecnológicos ofertam ao sujeito contemporâneo, mas na angústia e impotência que emerge cada vez que este percebe que pode reverter o resultado dos dados. Imediatamente, o que era um desejo se transforma em um imperativo: Como, você não vai ter um filho? Você não vai tentar esse novo tratamento de cinco mil dólares a caixa? Não vai mudar o sexo de seu filho? Caímos aqui na espiral dos possíveis. Não precisamos ir muito longe, basta escutar a ansiedade de alguns quando não podem ter o último modelo de I-phone. Somos bombardeados cotidianamente com mensagens que fazem do sucesso o maior. Assim, criamos uma geração completamente despreparada para a perda. É cada vez mais difícil ensinar um saber fazer com os resultados que se têm na mesa. Todos querem a todo custo o que lhes é de direito, custe o que custar, sem isso a vida não mais terá sentido. 

Quantos pacientes dizem frases como: “Minha vida não tem sentido se não tiver esse filho”, “Tenho que conseguir esse tratamento experimental a qualquer preço”, “Nunca serei feliz nesse corpo” etc. Perde-se às vezes anos entre desespero e angústia ao invés de aprender a viver com os números que se tem. É curioso, mas não uma surpresa, o fato de que aqueles que aprendem a viver com os dados que possuem conseguem na maioria das vezes perceber o óbvio, que seus dados fazem dele uma vida única. Nunca será possível comparar com os dados do vizinho. Portanto, não há competição no jogo de dados da vida, estamos mais para um jogo de paciência. 

Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise