Por Marcelo Veras
As redes sociais, com sua visibilidade viral instantânea, expuseram, tal como um circo de horrores, pensamentos que raramente são vistos na imprensa cotidiana
Muito ainda será dito acerca dos acontecimentos que antecederam e sucedem a recente eleição presidencial. Para ser fiel a meu propósito neste pequeno comentário, insisto que escrevo um texto que é parcial e precário sobre o momento. Ele é precário pela minha preguiça em tentar escrever algo exaustivo sobre tudo que leio e escuto, mas também é parcial, a meu ver, pela impossibilidade de se ter uma visione d’insieme do espetáculo tragicômico do qual todos passamos a fazer parte nas últimas semanas. Curiosamente, aos poucos fui abstraindo a questão política e passei a me interrogar sobre a diferença entre o obsceno e o pornográfico.
Aproveito um pouco do fascínio que exerce sobre os psicanalistas os casos que se afastam à direita e à esquerda do sino de Carl Friedrich Gauss, para falar dos comentários mais radicais em favor de uma tese ou de outra que pude presenciar. As redes sociais, com sua visibilidade viral instantânea, expôs, tal como um circo de horrores, pensamentos que raramente são vistos na imprensa cotidiana. É verdade que mesmo a imprensa cotidiana teve seu direito a dar uma saidinha da curva de Gauss, tanto à direita quanto à esquerda. Mas, convenhamos, nada se compara a certos posts em que o sujeito, nitidamente sem perceber a distância entre o espaço público e o privado, expôs pensamentos que fariam corar até o mais metódico reacionário.
O que faz com que essa fronteira entre o gozo incômodo, que envergonha, típico dos masturbadores de sites pornô, se transforme em algo que pode ser exposto em praça pública, sem vergonha, em comentários plenos de uma orgulhosa obscenidade?
Algo que sempre me instigou na leitura de Lacan é sua afirmação de que é preciso buscar a “máxima distância possível” entre o ideal e o objeto de gozo. Não se deve, dentro desta perspectiva, ignorar os efeitos devastadores do gozo, ou freudianamente falando, da pulsão de morte, quando esta recebe o manto dourado dos ideais. A cada testemunho da comissão da verdade torna-se bem claro esse risco. O que se constata é que na ditadura rapidamente o que parecia uma ação movida por ideais liberou o que há de mais destruidor no espírito humano.
Freud desenvolveu em 1921, em seu texto Psicologia das Massas, uma boa hipótese para os eventos de mobilização coletiva. O Outro não pode ser complexo, ambíguo, parcial. Ele tem que ser necessariamente portador de um elemento minimalista para que possa provocar o amor e o ódio das massas. É preciso reduzi-lo a um traço, a uma marca. É impressionante como dramas sociais de incrível complexidade podem ser resumidos a duas etiquetas: nordestino ou coxinha. Ora, qualquer conta de dona de casa sabe que o cálculo que envolve mais de cem milhões de eleitores é aberto a infinitas motivações para que se escolha o candidato A ou B. Ainda assim até mesmo pessoas que lidam em suas profissões diariamente com cálculos complexos, se esforçam por encontrar uma resposta em um traço ou um conjunto mínimo de traços que possam justificar seus afetos e opções. Busca-se um ponto de certeza que garanta que o mal está no campo do Outro, e não em mim. Nesse sentido, para justificar a certeza de minhas convicções, a falta de modéstia é ilimitada. Tudo que penso é certo, é o Outro que nunca tem razão.
Contudo, nem tudo são números. A grande astúcia de Psicologia das Massas é perceber que o traço que agrega, e que permite a contabilidade – mil, cem mil, um milhão de eleitores – não faz uma curva de Gauss. A curva de Gauss é apenas o chapéu que nos ilude. Na verdade, ela é uma cobra que engoliu um elefante. O elefante somos nós, um a um.
Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise